terça-feira, 31 de janeiro de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

FRANZ SCHUBERT
Sonata in B-flat Major - Andante Sostenuto

Poet'anarquista

Franz Schuber/ Compositor e Pianista Austríaco
Franz Schubert ao Piano, por Gustav Klimt

OUTROS CONTOS

«Domingo à Tarde», por Fernando Namora.

«Domingo à Tarde»
Romance de Fernando Namora

961- «DOMINGO À TARDE» 

[fragmento]
         
Pedia-me aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe ilusão de que poderia haver um erro ou uma possibilidade. 

Mas nem só Clarisse necessitava dessa ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a última pessoa que a doença pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o embaciado amarelento da face, os olhos que começavam a parecer desmedidos, isolados numa paisagem desabitada: as próprias feições se tinham alterado. 

A gente percebia-lhe, com uma ácida e progressiva nitidez, a corrupção. No entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos eu a queria admitir. 

Pela primeira vez, por assim dizer, nessa revolta das vísceras, eu fazia a violenta descoberta da morte – através de uma pessoa viva. 

Durante as minhas longas vigílias de cigarros trespassava-me o eco de longínquas vozes.

Fernando Namora

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

GENESIS - «Dancing With Moonlit Knight»

Poet'anarquista

DANÇA COM O CAVALEIRO ENLUARADO

“Você poderia me dizer onde se encontra o meu país?”
Disse o unifaun (1) aos olhos do seu verdadeiro amor
"Ele encontra-se comigo!" Gritou a Rainha do Talvez (2)
- Pela sua mercadoria, ele trocou por seu prémio

"Jornal da tarde!" Gritou uma voz na multidão (3)
“Um velho morreu!" O bilhete que ele deixou
Estava assinado “O Velho Pai Tâmisa”
- Parece que ele se afogou
Vendendo a Inglaterra por libras esterlinas

Cidadãos de Esperança e Glória (4)
O tempo passa - é ‘o momento de suas vidas’
Tranquilos agora, sentem-se
Mastigando através de seus sonhos Wimpey (5)
Eles comem sem fazer barulho
Digerindo a Inglaterra por libras esterlinas

O jovem diz ' você é o que você come' - coma bem
O velho diz ' você é o que você veste' - vista-se bem
Você sabe o que você é, você não dá a mínima
Arrancando seu cinto que é a sua farsa caseira

O Capitão conduz sua dança
Direto a noite toda (6)
- Junte-se à dança...
Sigam! Até que o Gral (7) e o pôr-do-sol mofem
Sigam! Até que o ouro esteja frio
Dancem lá fora com o cavaleiro enluarado
Cavaleiros dos selos de Escudo Verde (8) e gritem

Há uma velha senhora gorda do lado de fora do salão
Brincando com cartões de crédito
Ela adivinha a Sorte (9)
O maço de cartas está desigual desde o início
Todas as mãos estão jogando à parte

O Capitão conduz sua dança
Direto a noite toda
- Junte-se à dança...
Sigam! Vamos para uma reunião na Távola Redonda
Vocês são o espetáculo!
Lá vamos nós. - Você banca o cavalinho-de-pau (10)
Eu represento o bobo
Atiçaremos o touro
Cercando-o e bradando alto, bradando alto e cercando-o
Sigam! Com um desatarraxar do mundo, lá vamos nós
Sigam! Até que o ouro esteja frio
Dancem lá fora com o cavaleiro enluarado
Cavaleiros do selo de Escudo Verde (8) e gritem

Genesis
Banda Britânica

(1) Unifaun = Junção de Unicorn (unicórnio) com Faun (Fauno, na mitologia romana, o Deus dos campos e dos pastores; e origem etimológica da palavra fauna). Foneticamente, unifaun se torna um trocadilho com a palavra Uniform (uniforme, farda). O personagem Unifaun representa a velha Inglaterra histórica.

(2) Queen of Maybe = Alusão para Queen of May (Rainha de Maio), planta típica que na Inglaterra antiga simbolizava o início da boa estação e agouro de uma boa colheita. Hoje em dia, a expressão é usada na Inglaterra exclusivamente para propaganda de produtos. "Queen of Maybe" traduzido significa "Rainha do Talvez" que nesta obra representa a Inglaterra moderna.

(3) Paper late = Jornal da tarde, aludindo que é a versão revisada do jornal da manhã, geralmente contendo notícias mais recentes que não puderam ser publicadas na edição matutina.

(4) "Citizens of Hope & Glory" = Cidadãos de Esperança & Glória. Uma alusão ao hino nacional "Land of Hope and Glory (Terra de Esperança e Glória)". Na obra, representa o próprio povo inglês.

(5) Wimpey = Famosa sociedade elitista inglesa.

(6) The Captain leads his dance = Literalmente “o capitão conduz sua dança”. A palavra dança é usada como uma alusão ao protocolo habitual que, no caso, o capitão e seu pelotão precisam executar.

(7) Grail = Santo Graal. É o cálice no qual Jesus bebeu seu vinho na última ceia e que segundo a lenda foi levado à Inglaterra até a Corte do Rei Arthur. Representa o esplendor desse período.

(8) Green Shield stamps = Selos de Escudo Verde. Era uma promoção de incentivo às vendas, muito popular nos anos 60 até inicio dos anos 70. Os clientes recebiam selos de acordo com o valor de sua compra. Estes selos (com o desenho de um escudo verde) eram colados em um livro, que posteriormente poderiam ser trocados por brindes que geralmente consistiam em objetos do lar (tais como torradeiras, rádios, relógios, abajures, mesinhas de canto, etc).

(9) Laying out the credit cards she plays Fortune = Brincando com cartões de crédito, ela adivinha a sorte. O autor satiriza que os cartomantes de hoje em dia não usam mais as cartas, e sim cartões de crédito para prever o futuro.

(10) Hobbyhorse = Cavalinho de pau e o bobo, são personagens da Morris-dance, dança folclórica inglesa semelhante à quadrilha, apresentada por homens em trajes típicos.

SÁTIRA...

A Grande Conspiração
Sátira...

«A GRANDE CONSPIRAÇÃO»

- O Donald acaba de proibir
A entrada dos muçulmanos…
Pode haver perdas e danos,
É o Trampa que está a pedir!
- Tira as palas pra discernir:
Não passa de conspiração
Em jornal e televisão…
Só vê, quem não quer ver!
- E se te fosses foder
Mais a merda da visão?

POETA

OUTROS CONTOS

«Angústia», por Anton Tchekhov.

«Angústia»
Conto de Anton Tchekhov

960- «ANGÚSTIA»

Crepúsculo vespertino. Uma neve húmida, em grandes flocos, remoinha preguiçosa junto aos lampiões recém-acesos, cobrindo com uma camada fina e macia os telhados das casas, os dorsos dos cavalos, os ombros das pessoas, os chapéus. O cocheiro Yona Potapov está completamente branco, como um fantasma. Encolhido o mais que pode se encolher um corpo vivo, está sentado na boleia, sem se mover. Tem-se a impressão de que, mesmo que caísse sobre ele um montão de neve, não consideraria necessário sacudi-la… Seu rocim está igualmente branco e imóvel. Graças a sua imobilidade, à angulosidade das formas e à perpendicularidade de estaca de suas patas, parece mesmo, de perto, um cavalinho de pão-de-ló de um copeque. Seguramente, ele está imerso em meditação.

Não pode deixar de meditar quem foi arrancado do arado, da paisagem cinzenta e familiar, e atirado nessa voragem, repleta de luzes monstruosas, de um barulho incessante e de gente correndo…

Faz muito tempo que Yona e seu rocim não se mexem do lugar. Saíram de casa ainda antes do jantar, e, até agora, não apareceu trabalho. Mas, eis que a treva noturna desce sobre a cidade. A palidez das luzes dos lampiões cede lugar a cores vivas e a confusão das ruas torna-se mais barulhenta.

— Cocheiro, para a Víborgskaia! — ouve Yona. — Cocheiro! Estremece e vê, através das pestanas cobertas de neve, um militar de capote com capuz. — Para a Víborgskaia! — repete o militar. — Está dormindo? Para a Víborgskaia!

Em sinal de consentimento, Yona puxa as rédeas, e a neve cai em camadas de seus ombros e do dorso do cavalo… O militar senta-se no trenó. O cocheiro faz ruído com os lábios, estende o pescoço à feição de cisne, ergue-se um pouco e agita o chicote, mais por hábito que por necessidade. O cavalinho estica também o pescoço, entorta as pernas, que parecem estacas, e desloca-se com indecisão…

— Onde vai, demónio?! — ouve, logo depois, Yona exclamações partidas da massa escura de gente, que se desloca em ambos os sentidos. — Para onde te empurram os diabos? Mantenha-se à direita! — Não sabe dirigir! Olha a direita — zanga-se o militar.

O cocheiro de uma carruagem solta impropérios; um transeunte, que atravessou a rua correndo e chocou-se com o ombro contra a cara do rocim, lança um olhar rancoroso e sacode a neve da manga. Na boleia, Yona parece sentado sobre alfinetes e aponta com os cotovelos para os lados; seus olhos tontos perpassam pelas coisas, como se não compreendesse onde se encontra e o que está fazendo ali.

— Que gente canalha! — graceja o militar. — Eles se esforçam em chocar-se contra você ou cair em baixo do cavalo.

Combinaram isso. Yona volta-se para o passageiro e move os lábios… Sem dúvida, quer dizer algo, mas apenas uns sons vagos lhe saem da garganta.

— O quê? — pergunta o militar.

Yona torce a boca num sorriso, faz um esforço com a garganta e cicia:

— Pois é, meu senhor, assim é… perdi um filho esta semana. — Hum!… De que foi que morreu? Yona volta todo o corpo na direção do passageiro e diz: — Quem é que pode saber! Acho que foi de febre… Passou três dias no hospital e morreu… Deus quis. — Dá a volta, diabo! — ressoa nas trevas uma voz. — Não está mais enxergando, cachorro velho? É com os olhos que tem que olhar! — Anda, anda… — diz o passageiro. — Assim, não chegamos nem amanhã. Mais depressa!

O cocheiro estica novamente o pescoço, ergue-se um pouco e agita o chicote, com uma graciosidade pesada. Depois, torna a olhar algumas vezes para o passageiro, mas este fechou os olhos e parece pouco disposto a ouvir. Depois de deixá-lo na Víborgskaia, pára diante de uma taverna, encurva-se sobre a boleia e fica novamente imóvel… A neve molhada torna a pintá-lo de branco, juntamente com o rocim. Decorre uma hora… outra…

Três jovens passam pela calçada, fazendo muito barulho com as galochas e trocando impropérios: dois deles são altos e magros, o terceiro é pequeno e corcunda.

— Cocheiro, para a Ponte Politzéiski! — grita o corcunda, com voz surda. — Damos vinte copeques… os três! Yona sacode as rédeas e faz ruído com os lábios. Vinte copeques são um preço inadequado, mas, agora, pouco lhe importa o preço… Tanto faz seja um rublo ou cinco copeques, contanto que haja passageiros… Empurrando-se e soltando palavrões, os jovens acercam-se do trenó e sobem para os assentos, os três ao mesmo tempo. Começam a discutir a questão: dois deles irão sentados, e quem vai ficar de pé? Depois de uma longa troca de insultos, manhas e recriminações, chegam à conclusão de que o corcunda é quem deve ficar de pé, por ser o menor.

— Bem, faz o cavalo andar! — grita com voz trémula o corcunda, ajeitando-se de pé e soprando no pescoço de Yona. — Dá nele! Que chapéu você tem, irmão! Não se encontra um pior em toda Petersburgo… — Hi-i… hi-i… — ri Yona. — Assim é… — Ora, você assim é, bate no cavalo! Vai andar desse jeito o tempo todo? Sim? E se eu te torcer o pescoço? — Estou com a cabeça estalando… — diz um dos moços compridos. — Ontem, em casa dos Dukmassov, eu e Vaska tornamos quatro garrafas de conhaque. Não compreendo para que mentir! — irrita-se o outro moço comprido. — Mente como um animal. — Que Deus me castigue, é verdade… — Tão verdade como um piolho tossindo. — Hi-i! — ri Yona entre dentes. — Que senhores alegres! — Irra, com todos os diabos!… — indigna-se o corcunda. — Você vai andar ou não, velha peste? É assim que se anda? Estala o chicote no cavalo! Eh, diabo! Eh! Dá nele!

Yona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trémula do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. O corcunda continua os impropérios e, por fim, engasga com um insulto rebuscado, descomunal, e desanda a tossir. Os moços compridos começam a falar de uma certa Nadiejda Pietrovna. Yona volta a cabeça para olhá-los. Aproveitando uma pausa curta, olha mais uma vez e balbucia:

— Esta semana… assim, perdi meu filho! — Todos vamos morrer. — suspira o corcunda, enxugando os lábios, após o acesso de tosse. — Bem, bate nele, bate nele! Minha gente, decididamente, não posso continuar andando assim! Esta corrida não acaba mais? — Você deve animá-lo um pouco… umas pancadas no pescoço! — Está ouvindo, velha peste? Vou te moer o pescoço de pancada! Não se pode fazer cerimónia com gente como você, senão é melhor andar a pé! Está ouvindo, Zmiéi Gorínitch? Ou você não se importa com o que a gente diz? E Yona ouve, mais que sente, os sons de uma pancada no pescoço. — Hi-i… — ri ele. — Senhores alegres… que Deus lhes dê saúde! — Cocheiro, você é casado? — pergunta um dos compridos.

Eu? Hi-i… que senhores alegres! Agora, só tenho uma mulher, a terra fria… Hi-ho-ho… O túmulo, quer dizer!… Meu filho morreu, e eu continuo vivo… Coisa esquisita, a morte errou de porta… Em vez de vir me buscar, foi procurar o filho… E Yona volta-se, para contar como lhe morreu o filho, mas, nesse momento, o corcunda solta um suspiro de alívio e declara que, graças a Deus, chegaram ao destino. Tendo recebido vinte copeques, Yona fica por muito tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele… A angústia que amainara por algum tempo torna a aparecer, inflando-lhe o peito com redobrada força. Os olhos de Yona correm, inquietos e sofredores, pela multidão que se agita de ambos os lados da rua: não haverá, entre esses milhares de pessoas, uma ao menos que possa ouvi-lo? Mas a multidão corre, sem reparar nele, nem na sua angústia… Uma angústia imensa, que não conhece fronteiras. Dá a impressão de que, se o peito de Yona estourasse e dele fluísse para fora aquela angústia, daria para inundar o mundo e, no entanto, não se pode vê-la. Conseguiu caber numa casca tão insignificante, que não se pode percebê-la mesmo de dia, com muita luz… Yona vê o zelador de uma casa, carregando um embrulho, e resolve travar conversa.

— Que horas são, meu caro? — pergunta. — Mais de nove… Por que você parou aqui? Passa!

Yona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à angústia… Considera já inútil dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor aguda e puxa as rédeas… Não pode mais.

“Para casa”, pensa, “para casa”.

E o cavalinho, como se tivesse compreendido seu pensamento, começa a trotar ligeiramente. Uma hora e meia depois, Yona está sentado junto ao fogão grande e sujo. Há gente roncando em cima do fogão, no chão e sobre os bancos. O ar é abafado, sufocante… Yona olha para os que dormem, coça a cabeça e lamenta haver voltado tão cedo para casa… “Não ganhei nem para a aveia”, pensa. “Daí essa angústia. Uma pessoa que conhece o ofício… que está bem alimentada e tem o cavalo bem nutrido também, está sempre calma…” Num dos cantos, levanta-se um jovem cocheiro, funga, sonolento, e arrasta-se para o balde de água.

— Ficou com sede? — pergunta Yona. — Com sede, sim! — Bem… Que lhe faça bom proveito… Pois é, irmão, e eu perdi um filho… Está ouvindo? Foi esta semana, no hospital… Que coisa!

Yona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo. O velho suspira e se coça… Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém sobre aquilo… É preciso falar com método, lentamente… É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como morreu… É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia… É preciso falar sobre ela também… De quantas coisas mais poderia falar agora? O ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar… E é ainda melhor falar com mulheres. São umas bobas, mas desandam a chorar depois de duas palavras.

“É bom ir ver o cavalo”, pensa Yona. “Sempre há tempo para dormir…”

Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Yona pensa sobre a aveia, o feno, o tempo… Estando sozinho, não pode pensar no filho… Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável…

Está mastigando? — pergunta Yona ao cavalo, vendo seus olhos brilhantes. — Ora, mastiga, mastiga… Se não ganhamos para a aveia, vamos comer feno… Sim… Já estou velho para trabalhar de cocheiro… O filho é que devia trabalhar, não eu… Era um cocheiro de verdade… Só faltou viver mais…

Yona permanece algum tempo em silêncio e prossegue: — Assim é, irmão, minha eguinha… Não existe mais Kuzmá Iônitch… Foi-se para o outro mundo… Morreu assim, por nada… Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu filho… E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo… Dá pena, não é verdade?

O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão de seu amo… Yona anima-se e conta-lhe tudo…

Anton Tchekhov

domingo, 29 de janeiro de 2017

SÁTIRA...

A Longa Hibernação
Sátira...

«A LONGA HIBERNAÇÃO»

Como é, malta hibernada,
O Trampa ainda presidente?...
De pedra e cal está assente
A personagem mais votada!
Muita gente envergonhada
Por ter feito ‘figura d’urso’,
Resolvem apoiar discurso
Do mais puro populismo…
Pergunto eu, sem cinismo,
Não havia outro recurso?

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MADNESS - «Grandslam»

Poet'anarquista

Madness
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«A Rota Não Escolhida», conto poético por Robert Frost.

Por aqui:
«POEMA DE ROBERT FROST»
«POEMA DE ROBERT FROST»
«A Rota Não Escolhida»
Poema de Robert Frost

959- «A ROTA NÃO ESCOLHIDA»

Rotas bifurcavam na amarela mata, 
E pobre, ai!, não pude com ambas
E ser um andarilho, tempo desata
E olhei o chão, sim, mais não falta
Vi onde dobravam as rasteiras ramas;

Pois tomei a outra, justificado,
Tendo talvez o melhor apelo,
Era verde e querida a do lado;
Apesar dos que tinham passado
e tornado gastas, desmazelo,

E na manhã as duas iguais
folhas não pisadas por ninguém.
Ah, guardei e espero um pouco mais!
já sei qual rumo essa trilha faz,
e duvidei que um dia a volta vem.

E eu vou contando à luz exata
lugar, ou tempo, nossa sentença:
Rotas bifurcavam ali na mata –
e minha escolha, não sensata,
ela que fez toda a diferença. 

Robert Frost

sábado, 28 de janeiro de 2017

OUTROS CONTOS

«Um Dia Ideal para os Peixes-Banana», por J. D. Salinger.

Por aqui- «PENSAMENTO DO DIA», POR J. D. SALINGER

«Um Dia Ideal para os Peixes-Banana»
Conto de J. D. Salinger

958- «UM DIA IDEAL PARA OS PEIXES-BANANA»

Noventa e sete agentes de publicidade de Nova York estavam hospedados no hotel e, do jeito que vinham monopolizando as linhas interurbanas, a moça do 507 teve de esperar do meio-dia até quase às duas e meia para completar sua ligação. Mas ela tratou de aproveitar bem o tempo. Leu um artigo numa revista feminina, intitulado “O Sexo é Divertido… ou um Inferno”. Lavou o pente e a escova. Tirou uma mancha da saia do conjunto bege. Mudou de lugar um botão da blusa que comprara nas Lojas Saks. Arrancou dois cabelinhos que haviam acabado de aflorar numa verruga. Quando a telefonista afinal ligou para seu quarto, estava sentada no sofá ao lado da janela e quase terminado de pintar as unhas da mão esquerda.

Era uma dessas moças que não se afobam nem um pouquinho porque o telefone está tocando. Dava a impressão de que seu telefone estava chamando desde o dia em que atingira a puberdade.

Com o pincelzinho de esmalte — enquanto o telefone tocava — retocou a unha do dedo mínimo, acentuando a meia-lua. Feito isso, tampou o vidro de esmalte e, levantando-se, ficou abanando a mão esquerda para fazer o esmalte secar mais depressa. Com a outra mão apanhou de cima do sofá um cinzeiro cheio até a borda e o levou até a mesinha de cabeceira, onde estava o telefone. Sentou numa das camas-gémeas, que a essa hora já estavam arrumadas, e — era a quinta ou sexta vez que o telefone tocava — levantou o fone do gancho.

— Alô — disse, mantendo os dedos da mão esquerda bem estendidos e afastados de seu robe de seda branca, que era tudo que estava vestindo, além dos chinelos. Os anéis estavam no banheiro.

— Sua ligação para Nova York está pronta, Sra. Glass — a telefonista anunciou.

— Obrigada — a moça respondeu, abrindo lugar para o cinzeiro na mesinha de cabeceira.

Ouviu-se uma voz de mulher.

— Muriel? É você que está falando?

A moça afastou ligeiramente o fone do ouvido. —Sou eu sim, mamãe. Como vai você?

— Tenho estado preocupadíssima com você. Por que você não me telefonou? Você está bem?

— Tentei falar para você ontem à noite, e anteontem também. O telefone aqui tem andado…

— Você está bem, MurieI?

A moça aumentou a distância entre o fone e seu ouvido.

— Estou muito bem. Estou com calor. Hoje é o dia mais quente que faz na Flórida nos…

— Por que é que você não me telefonou? Tenho andado muitíssimo preocupada…

— Mamãe, querida, não precisa gritar. Estou te ouvindo perfeitamente. Telefonei duas vezes ontem de noite. A primeira vez logo depois…

— Eu disse a seu pai que você provavelmente ia telefonar ontem de noite. Mas não, ele tinha que…
Você está bem, Muriel? Fala a verdade.

— Estou ótima. Por favor, para de ficar me perguntando isso.

— Quando é que vocês chegaram aí?

— Sei lá. Quarta-feira de manhã, bem cedinho.

— Quem é que dirigiu o carro?

— Foi ele — a moça respondeu. —E não precisa ficar toda nervosa. Ele dirigiu muito direitinho. Fiquei até espantada.

— Ele dirigiu? Muriel, você me deu sua palavra de…

— Mamãe —a moça interrompeu —já te disse. Ele dirigiu muito direitinho. O tempo todo a menos de cinquenta, se te interessa saber.

— Ele tentou fazer aquela brincadeira com as árvores?

— Já disse que ele dirigiu muito bem, mamãe. Agora, por favor… Pedi a ele para ficar perto da linha branca e tudo, e ele entendeu o que eu queria dizer. E ficou. Procurou até não olhar para as árvores, dava pra se ver. Por falar nisso, papai já consertou o carro?

— Ainda não. Eles querem quatrocentos dólares só para…

— Mamãe, o Seymour disse a papai que pagava o conserto. Não há nenhuma razão para…

— Está bem, vamos ver. Como é que ele se comportou… no carro e tudo?

— Muito bem.

— Ele continuou a te chamar daquela coisa horrorosa…

—Não. Agora inventou outro troço.

— O quê?

— Ah, quê que interessa, mamãe?

— Muriel, eu quero saber. Seu pai…

— Tá bem, tá bem. Ele me chama de Miss Vagabunda Espiritual de 1948 — a moça disse, e deu uma risada.

— Não acho graça, Muriel, não acho a mínima graça. É horrível. Na verdade, é triste. Quando eu penso como…

— Mamãe —a moça interrompeu —Escuta. Você se lembra daquele livro que ele me mandou da Alemanha? Você sabe… aqueles poemas em alemão. Onde é que eu enfiei aquele livro? Tenho me danado de pensar…

— Está contigo.

— Tem certeza?

— Claro. Quer dizer, o livro está comigo. Está no quarto do Freddy. Você deixou aqui e eu não tinha lugar na… Por quê? Ele está querendo o livro?

— Não. Só me perguntou sobre ele, quando estávamos vindo para cá. Queria saber se eu tinha lido.

— Mas era em alemão!

— Eu sei, querida. Isso não importa — disse a moça, cruzando as pernas. —Ele disse que os poemas foram escritos pelo único grande poeta deste século. Disse que eu devia ter comprado uma tradução ou coisa parecida. Ou ter feito o favor de aprender alemão.

— Horrível. Horrível. É triste, na verdade, isso é que é. Seu pai disse ontem à noite…

— Espera um instantinho, mamãe — a moça falou. F0i até a janela apanhar o maço de cigarros, acendeu um e voltou para seu lugar na cama.

— Mamãe? —ela falou, soltando a fumaça.

— Muriel. Escuta agora o que eu vou dizer.

— Estou ouvindo.

— Seu pai conversou com o Doutor Sivetski.

— Sei.

— Contou tudo a ele. Pelo menos me disse que contou… Você sabe como é o seu pai. As árvores. Aquele negócio da janela. As coisas horrorosas que ele disse a sua avó, sobre os planos que ela fazia para morrer. O que ele fez com aquelas lindas fotografias das Bermudas… Tudo.

— Sei. E daí?

— Bem. Em primeiro lugar, o Doutor disse que foi um verdadeiro crime o exército deixar sair do hospital… Palavra de honra. Disse a seu pai, com toda a clareza, que é possível — muito possível, foi o que ele disse — que o Seymour perca inteiramente o controle. Minha palavra de honra.

— Tem um psiquiatra aqui no hotel—a moça falou.

— Quem? Qual o nome dele?

— Sei lá. Rieser ou coisa parecida. Dizem que é muito bom.

— Nunca ouvi falar nele.

— Bem, apesar disso dizem que ele é muito bom.

— Muriel, não seja malcriada, por favor. Nós estamos muito preocupados com você. Seu pai queria te telegrafar ontem de noite, pedindo para você voltar pra casa.

— Eu não vou voltar para casa agora, mamãe. Por isso, trata de ficar calminha.

— Muriel. Palavra de honra, o Doutor Sivetski disse que o Seymour pode perder inteiramente o controle…

— Acabei de chegar aqui, mamãe. São minhas primeiras férias em muitos anos. Não vou agora fazer todas as malas e voltar para casa. De qualquer maneira, não ia mesmo poder viajar agora. Estou tão queimada que mal posso me mexer.

— Você se queimou muito? Não usou aquele vidro de óleo que botei na tua mala? Pus o vidro bem…

— Usei sim. E me queimei assim mesmo.

— Mas isso é horrível. Onde é que você está queimada?

— Em tudo quanto é lugar, querida, por todo lado.

— Isso é horrível.

— Não vou morrer por causa disso.

— Me diga, você conversou com o tal psiquiatra?

— Bem, mais ou menos —a moça respondeu.

— O que é que ele disse? Onde estava o Seymour quando você falou com ele?

— No Salão Oceano, tocando piano. Nessas duas noites, desde que chegamos aqui, ele tem tocado piano.

— Bom, o quê que ele disse?

— Ah, pouca coisa. Ele é que veio falar comigo. Eu estava sentada ao lado dele ontem à noite, no bingo, e ele me perguntou se não era o meu marido que estava tocando piano na outra sala. Disse que sim, que era, e ele me perguntou se o Seymour tinha andado doente ou coisa que o valha. Aí eu contei.

— Por que ele perguntou isso?

— Sei lá, mamãe. Acho que é porque ele está tão pálido e tudo. Seja como for, depois do bingo ele e a mulher me convidaram para tomar um drinque. Aí eu fui. A mulher dele era um horror. Você lembra daquele vestido de noite pavoroso que vimos na vitrina da Bonwit? Aquele que você disse que, para se usar, a gente tinha que ter uma…

— O verde?

— Esse mesmo. E olha que ela tinha umas cadeiras imensas. Ficou me perguntando se o Seymour era parente daquela tal de Suzanne Glass que tem uma chapelaria na Avenida Madison.

— Mas o que é que ele disse? O médico.

— Ah, bom, nada de mais, realmente. Quer dizer, estávamos no bar e tudo. Uma barulheira tremenda.

— Sei, mas você contou… contou o que ele tentou fazer com a cadeira de sua avó?

— Não, mamãe. Não entrei em detalhes. Provavelmente vou ter outra chance de conversar com ele. Ele passa o dia todo no bar.

— Ele falou se achava que era possível o Seymour ficar… você sabe… esquisito ou qualquer coisa assim? Fazer alguma coisa contigo?

— Não exatamente. Ele precisa saber de mais coisas, mamãe. Eles têm de conhecer a infância da gente e esse troço todo. Já te disse, mal podíamos conversar de tão barulhento que era o lugar.

— Bem. E o teu casaco azul?

— Ficou bom. Mandei tirar um pouco do enchimento.

— E como é que estão as roupas esse ano?

— Horrorosas. Mas pavorosas mesmo. A gente vê lantejoulas, tudo…

— E o quarto de vocês?

— Bonzinho. Quer dizer, razoável. Não conseguimos o quarto em que estivemos antes da guerra. A frequência esse ano está péssima. Você devia ver as pessoas que sentam perto de nós na sala de jantar. Na mesa ao lado. Parece até que vieram para cá de caminhão.

— O que é que se vai fazer, é assim em todo lugar. E teu vestido de baile novo?

— Ficou muito comprido. Eu te falei que ia ficar comprido.

— Muriel, só vou te perguntar mais uma vez. Você está mesmo bem?

— Estou, mamãe. Pela nonagésima vez.

— E não quer voltar para casa?

— Não, mamãe.

— Seu pai disse ontem à noite que teria o maior prazer em te pagar uma viagem, se você quisesse ir a algum lugar sozinha, para pensar um pouco sobre isso tudo. Você bem que podia fazer uma bonita viagem de navio. Nós achamos…

— Não, obrigada — disse a moça, descruzando as pernas.

— Mamãe, essa chamada vai custar uma for…

— Quando eu penso como você esperou por esse rapaz a guerra toda… Quando a gente pensa em todas essas mocinhas malucas que…

— Mamãe, é melhor nós desligarmos. O Seymour pode entrar a qualquer momento.

— Onde é que ele está?

— Na praia.

— Na praia? Sozinho? Ele se comporta direito na praia?

— Mamãe, você fala como se ele fosse um louco furioso…

— Eu não falei nada disso, Muriel.

— É, mas do jeito que você fala… Ele só fica deitado na areia. Sem tirar o roupão.

— Ele não tira o roupão? Por quê?

— Sei lá. Acho que é porque está tão branco.

— Meu Deus, mas ele precisa de sol. Será que você não consegue fazer tirar o roupão?

— Você conhece o Seymour —disse a moça, e cruzou as pernas outra vez. — Ele diz que não quer que um bando de idiotas fique olhando a tatuagem dele.

— Mas ele não tem nenhuma tatuagem! Ele arranjou alguma tatuagem no exército?

— Não, mamãe. Não, minha querida —respondeu a moça, levantando-se. —Escuta, talvez eu telefone para você amanhã.

— Muriel, agora presta atenção.

—Sim, mamãe — ela falou, pondo o peso do corpo sobre a perna direita.

— Me telefona no instante em que ele fizer, ou disser, qualquer coisa esquisita. Você sabe de quê que eu estou falando. Está me ouvindo?

— Mamãe, eu não tenho medo do Seymour.

— Muriel, quero que você me prometa.

— Tá bem, prometo. Até logo, mamãe. Dá um beijo no pai – ela disse, e desligou o telefone.

— Viu mais vidro? — disse Sybil Carpenter, que estava hospedado no hotel com sua mãe. —Viu mais vidro? 

— Queridinha, para de dizer isso. Você está deixando sua mãezinha maluca de tanto repetir isso. Agora fica quieta, por favor.

A Sra. Carpenter estava passando óleo de bronzear nos ombros de Sybil, espalhando-o em direcção às costas, por sobre as delicadas espáduas que mais pareciam duas pequenas asas. Sybil estava precariamente equilibrada sobre uma grande bola de praia, de frente para o mar. Usava um malhou amarelo-canário de duas peças, uma das quais só seria realmente necessária dentro de uns nove ou dez anos.

— De fato, era só um lenço de seda comum. Dava para se ver, quando a gente chegava perto — falou a mulher que estava sentada numa espreguiçadeira de lona, ao lado da Sra. Carpenter. —Eu queria saber é como ela amarrou o lenço. Estava uma gracinha.

— Devia estar mesmo — a Sra. Carpenter concordou. — Sybil, fica quieta, queridinha.

— Você viu mais vidro?

A Sra. Carpenter suspirou.

— Pronto — disse, fechando o vidro. — Agora, corre e vai brincar, meu bem. Mãezinha vai até o hotel tomar um martini com a Sra. Hubbel. Depois eu trago a azeitona para você.
Liberada, Sybil imediatamente correu para a parte lisa da praia e começou a andar na direcção do Pavilhão dos Pescadores. Parando apenas para enfiar o pé num castelo em ruínas, já minado pela água do mar, em pouco tempo saíra da área reservada para os hóspedes do hotel.

Caminhou mais algumas centenas de metros e aí, de repente, disparou numa corrida oblíqua, subindo para onde a areia era macia. Parou de chofre quando chegou ao lugar onde um homem ainda moço estava deitado de costas.

— Você vai entrar n’água, viu mais vidro? — ela perguntou.

O rapaz teve um sobressalto, sua mão direita correndo para a gola do roupão. Virou-se de bruços, deixando cair a toalha enrolada que lhe cobria os olhos. Olhou para cima, em direcção a Sybil.

— Ei. Como vai, Sybil?

— Você vai entrar n’água?

— Estava te esperando. Quê que há de novo?

— O quê? — Sybil perguntou.

— Quê que há de novo? Qual é a novidade no programa?

— Papai chega amanhã, num avião — ela respondeu, chutando a areia.

— Na minha cara não, queridinha — o rapaz disse, segurando o tornozelo de Sybil. — É, estava mesmo na hora do teu pai chegar. Tenho aguardado a chegada dele a cada minuto. A cada minuto.

— Onde é que está a moça? — Sybil disse.

— A moça?

O rapaz sacudiu um pouco da areia que se prendera a seus cabelos já ralos.

— Isso é difícil de dizer, Sybil. Ela pode estar em mil lugares. No cabeleireiro, pintando o cabelo cor de vison. Ou fazendo bonecas para as crianças pobres, no quarto dela.

Já agora deitado ao comprido, ele fechou as mãos e pôs uma sobre a outra, como apoio para o queixo.

— Me pergunta outra coisa, Sybil. Esse teu malhou é bonito. Se há uma coisa que eu gosto é de malhou azul.

Sybil olhou-o, espantada, e depois baixou os olhos em direcção à sua barriguinha protuberante.

— Esse malhou é amarelo — ela falou. — É amarelo.

— É? Chega aqui mais perto.

Sybil avançou um passo.

— Você tem toda a razão. Sou mesmo um bobo.

— Você vai entrar n’água?

— Estou considerando seriamente essa possibilidade. Acho que você vai gostar de saber que estou pensando cuidadosamente no assunto, Sybil.
Sybil cutucou a bóia de borracha que o rapaz às vezes usava orno travesseiro.

— Tá precisando de ar — ela disse.

— Isso mesmo. Ela está mais precisada de ar do que eu estou disposto a admitir — falou, afastando as mãos e deixando o queixo repousar sobre a areia. — Sybil, você está muito bonita. Dá gosto te ver. Me fala sobre você.

Estendeu os braços para a frente e segurou os tornozelos da menina.

— Eu sou Capricórnio — ele falou. Quê que você é?

—A Sharon Lipschutz disse que você deixou sentar no banco do piano ao teu lado.

— A Sharon Lipschutz disse isso?

Sybil assentiu vigorosamente com a cabeça.

O rapaz soltou os tornozelos de Sybil, recolhendo as mãos, e deitou o lado do rosto sobre o antebraço direito.

— Bem, você sabe como são essas coisas, Sybil. Eu estava sentado lá, tocando. E você nem estava por perto. E a Sharon Lipschutz veio e se sentou ao meu lado. Eu não podia empurrar ela pra fora, podia?

— Podia.

— Ah, não. Não podia fazer isso. Mas eu te digo o que é que eu fiz.

— O quê?

— Fiz de conta que ela era você.

Sybil imediatamente curvou-se e começou a cavar a areia. — Vamos pra água — ela disse.

— Está bem. Acho que a gente pode dar um jeitinho nisso.

— Na próxima vez, empurra ela pra fora.

— Empurra quem pra fora?

— A Sharon Lipschutz.

— Ah, a Sharon Lipschutz. Como esse nome aparece a toda hora. Misturando memória e desejo.

O rapaz subitamente levantou-se. Olhou para o mar.

— Sybil, sabe o quê que nós vamos fazer? Vamos ver se pegamos um peixe-banana.

— Um quê?

— Um peixe-banana — ele disse, desfazendo o laço do cinto do roupão. Despiu o roupão. Tinha a pele muito branca, os ombros estreitos, e usava um calção azul-pavão. Dobrou o roupão, em dois e em três. Desenrolou a toalha de que se servira para cobrir os olhos, estendeu-a sobre a areia e pôs sobre ela o roupão dobrado. Abaixou-se para pegar a bóia e enfiou-a sob o braço direito. Feito isso, deu a mão livre para Sybil e saíram andando em direcção ao mar.

— Imagino que você já tenha visto muitos peixes-banana na tua vida — disse o rapaz.
Sybil fez que não com a cabeça.

— Não viu? Afinal, onde é que você mora?

— Não sei.

— Claro que sabe. Tem que saber. A Sharon Lipschutz sabe onde é que ela mora, e só tem três anos e meio.

Sybil parou e desprendeu-se, com um arranco, da mão dele.

Pegou uma concha comum de praia e examinou-a com exagerado interesse. Jogou-a fora.

— Whirly Wood, em Connecticut — ela disse, e recomeçou a andar, barriga estufada para a frente.

— Whirly Wood, em Connecticut — ele repetiu. — Será que, por acaso, essa cidade fica perto de Whirly Wood, em Connecticut?

Sybil olhou para ele.

— É lá que eu moro — falou, impaciente. — Eu moro em Whirly Wood, Connecticut.
Correu alguns passos à frente dele, agarrou o pé esquerdo com a mão esquerda e deu uns dois ou três pulos.

— Você não faz ideia como isso esclarece tudo — o rapaz disse. Sybil largou o pé e perguntou: — Você já leu “Sambo, o Negrinho”?

— Gozado você me perguntar isso. Acontece que eu acabei de ler esse livro ontem de noite — ele respondeu. Estendeu o braço e tomou novamente a mão de Sybil. — Você gostou?

— Os tigres todos ficaram correndo em volta daquela árvore?

— Pensei que nunca mais iam parar. Nunca vi tanto tigre.

— Tinha só seis — ela falou.

— Só seis! Você chama isso de só?

— Você gosta de cera? — Sybil perguntou.

— Gosto de quê?

— Cera.

— Gosto muito. Você não gosta?

Sybil concordou com a cabeça.

— Você gosta de azeitona? — Sybil perguntou.

— Azeitona? Adoro. Azeitona e cera. Nunca vou a lugar nenhum sem levar um estoque de azeitonas e cera.

— Você gosta da Sharon Lipschutz?

— Gosto. Gosto sim — o rapaz respondeu. — O que eu mais gosto nela é que ela nunca maltrata os cachorrinhos no saguão do hotel. Por exemplo, aquele buldoguezinho da moça do Canadá. Você provavelmente não vai me acreditar, mas algumas menininhas gostam de espetar aquele cachorrinho com um pedaço de pau. A Sharon não. Ela nunca faz nenhuma maldade. É por isso que eu gosto tanto dela.

Sybil ficou calada.

— Eu gosto de mastigar vela — ela disse, finalmente.

—Quem não gosta? — o rapaz falou, molhando os pés. — Opa! A água tá fria.
Jogou a bóia dentro d’água.

— Não, espera um instante, Sybil. Espera até a gente entrar mais um pouco.

Foram andando até a água atingir a cintura de Sybil. Aí o rapaz levantou-a e a deitou de bruços sobre a bóia.

—Você nunca usa uma touca de cabelo nem nada? — ele perguntou.

—Não me larga! — Sybil ordenou. — Agora me segura.

— Senhorita Carpenter, por favor. Eu entendo do riscado. Trata só de ficar olhando para ver se descobre algum peixe-banana. Hoje está fazendo um dia ideal para os peixes-banana.

— Não tou vendo nenhum — Sybil disse.

— Isso é compreensível. Eles têm uns hábitos muito estranhos —disse o rapaz, enquanto continuava a empurrar a bóia. A água ainda não chegava à altura de seu peito. — Levam uma vida muito trágica. Você sabe o quê que eles fazem?

Ela fez que não com a cabeça.

— Bem, eles entram nadando num buraco onde tem uma porção de bananas. São iguaizinhos a qualquer peixe normal quando entram, mas mal se vêem lá dentro eles se comportam como uns porcos. No duro. Já vi um peixe-banana entrar num buraco e comer setenta e oito bananas — ele falou. Empurrou a bóia e sua passageira um pouquinho mais em direcção ao horizonte. — Naturalmente, depois disso eles ficam tão gordos que não conseguem mais sair do buraco. Não passam pela porta.

— Não vamos muito para longe, não — Sybil disse. — O quê que acontece com eles?

— O que acontece com quem?

— Com os peixes-banana.

— Ah, você quer dizer, depois que comem tantas bananas que não conseguem mais sair do buraco de banana?

— É.

— Bem, sinto muito dizer isso a você, Sybil. Eles morrem.

— Por quê?

— Porque pegam a febre da banana. É uma doença terrível.

— Aí vem uma onda — ela disse, nervosa.

— Vamos ignorá-la. Vamos esnobar essa onda — o rapaz falou. —Dois esnobes.

Segurou os tornozelos de Sybil e os empurrou para a frente e para baixo, fazendo a bóia deslizar por cima da crista da onda. A água empapou os cabelos louros de Sybil, mas o grito que ela deixou escapar veio carregado de prazer.

Quando a bóia voltou a estabilizar-se, ela afastou com a mão uma mecha de cabelos molhados que lhe caíra sobre os olhos e informou:

— Acabei de ver um.

— Viu o quê, meu bem?

— Um peixe-banana.

— Deus meu! Não diga! Ele estava com alguma banana na boca?

— Tava — ela respondeu. —Com seis.

O rapaz de repente segurou um dos pés molhados de Sybil, que pendia da beirada da bóia, e o beijou.

— Ei! —disse a proprietária do pé, virando-se para trás.

— Ei coisa nenhuma! Agora vamos voltar. Você já brincou bastante? -Não!

— Sinto muito — disse ele, e empurrou a bóia até a praia, onde Sybil desembarcou. Puxou a boia até onde tinha deixado suas coisas.

— Té logo — ela falou, e correu sem remorso na direcção do hotel. O rapaz vestiu o roupão, fechou cuidadosamente a gola e enfiou a toalha no bolso. Apanhou a bóia molhada e escorregadia, incómoda de carregar, e ajeitou-a sob o braço. Seguiu sozinho, devagar pela areia fofa e quente, a caminho do hotel.

No subsolo do hotel, por onde os banhistas eram obrigados a entrar, uma mulher com o nariz coberto de pomada tomou o elevador junto com o rapaz.

— Por que você está olhando para os meus pés? — ele lhe perguntou, quando o elevador se pôs em movimento.

— O que o senhor disse?

— Perguntei por que é que você está olhando para os meus pés.

— O senhor vai me desculpar, mas acontece que eu estava olhando para o chão — a mulher falou, e encarou a porta do elevador.

— Se quer olhar para a droga dos meus pés, diga logo. Mas não precisa ficar olhando escondido.

— Deixa saltar aqui mesmo, por favor — a mulher disse rapidamente para a ascensorista.
As portas se abriram e a mulher saiu, sem olhar para trás.

— Eu tenho dois pés normais, pomba, e não admito que ninguém fique olhando para eles — o rapaz falou. — Quinto, por favor.

Tirou a chave do bolso do roupão. Desceu no quinto andar, caminhou ao longo do corredor e entrou no 507. O quarto cheirava a mala de couro nova e a removedor de esmalte de unhas.

Olhou de relance na direçção da moça que dormia numa das camas-gémeas. Caminhou até uma das malas, abriu-a e, sob uma pilha de roupas de baixo, apanhou uma Ortgies automática, calibre 7.65. Soltou o pente de balas, examinou-o e enfiou de novo no lugar. Armou a pistola. Feito isso, foi sentar-se na cama desocupada, olhou para a moça, apontou a pistola e deu um tiro em sua própria tempera direita.

J. D. Salinger

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

SÁTIRA...

Para tudo há Remédio
Sátira...

«PARA TUDO HÁ REMÉDIO»

- Não há baixa na TSU,
Acabou-se o aumento!
- Baixo o PEC meio%,
Ganho eu, e ganhas tu!
- E se fosses levar no cu…
Dás alguma garantia?
- Se não houver anomalia,
Paga o freguês habitual.
- Não me levem a mal…
Baixo as calças em que dia?

POETA

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

CAMEL - «Spirit of the Water»

Poet'anarquista

Camel
Banda Britânica

OUTROS CONTOS

«Phyllis e Rosamond», por Virginia Woolf.

«Phyllis e Rosamond»
Duas Irmãs/ Pierre Auguste-Renoir

957- «PHYLLIS E ROSAMOND»

Nesta época tão curiosa, quando já começamos a necessitar de retratos de pessoas, de suas mentes e sua indumentária, um contorno fiel, desenhado sem mestria, porém com honestidade, é bem capaz de ter algum valor.

Que cada homem, ouvi dizer outro dia, ponha-se a anotar os detalhes de uma jornada de trabalho; a posteridade há de ficar tão contente com o catálogo quanto ficaríamos nós, se tivéssemos um tal registro de como o porteiro do Globe e o homem responsável pelos portões do Park passaram o sábado, 18 de março, do ano da graça de 1568.

Como os retratos desse tipo que temos são quase invariavelmente do sexo masculino, que se empertigava pelo palco com proeminência maior, parece valer a pena tomar como modelo uma dessas muitas mulheres que se agrupam na sombra. Pois que um estudo de história e biografia convence qualquer pessoa bem-intencionada de que essas figuras obscuras ocupam um lugar não diferente daquele que a mão do exibidor assume na dança das marionetes, com o dedo posto no coração. É verdade que nossos olhos ingênuos acreditaram por muitas eras que as figuras dançavam por sua livre vontade, dando os passos que bem queriam; e a luz parcial que romancistas e historiadores já começaram a lançar sobre o espaço apertado e escuro dos bastidores pouco fez por enquanto, a não ser nos mostrar quantos cordões existem, mantidos em mãos ocultas, para uma torção ou puxão dos quais dependem todos os meneios da dança. Este preâmbulo nos conduz pois ao ponto do qual partimos; tão firmes quanto pudermos, tencionamos olhar para um grupinho que vive neste momento (20 de junho de 1906); e que parece, por algumas razões que iremos dar, sintetizar os atributos de muitos. É um caso comum, porque afinal são numerosas as jovens nascidas de pais bem-colocados, respeitáveis e prósperos; e todas elas devem ter muitos dos mesmos problemas, não podendo senão haver, infelizmente, pouca diversidade nas respostas que dão.

São cinco filhas, todas mulheres, como lhe explicarão com pesar: lamentando esse erro inicial, ao que parece pela vida afora, que seus pais cometeram. Além disso, acham-se em campos separados: duas irmãs se opõem a duas; e a quinta vacila uniformemente entre as outras. Decretou a natureza que duas delas herdarão um espírito resoluto e combativo, que se aplica com êxito, e nunca de modo inoportuno, a problemas sociais e à economia política; enquanto as outras duas a natureza fez frívolas, domésticas, de temperamentos mais sensíveis e simples. Essas últimas estão condenadas a ser o que, no jargão do século, chama-se de ”filhas caseiras”. Suas irmãs, decididas a cultivar o espírito, entram na faculdade, lá se dão bem e casam-se com professores. Fazem carreiras tão idênticas às dos próprios homens que nem chega a valer a pena convertê-las em objetos de investigação especial. A quinta irmã distingue-se menos pelo caráter que qualquer uma das outras; casando-se aos 22 anos, mal tem tempo de desenvolver os traços individuais da condição de senhorinha que nos pusemos a descrever. Nas duas ”filhas caseiras”, Phyllis e Rosamond, como as chamaremos, encontramos um material excelente para nossa pesquisa.

Alguns fatos nos ajudarão a colocá-las em seus devidos lugares, antes de iniciarmos o exame. Phyllis tem 28 anos, Rosamond, 24. São pessoas graciosas, de faces rosadas, vivazes; um olhar minucioso não encontrará em seus traços uma beleza perfeita; mas seus trajes e maneiras dão-lhes o efeito da beleza, sem lhes dar a substância. Parecem nativas da sala de visitas, como se, nascidas em vestidos de seda para a noite, jamais tivessem posto o pé num solo mais irregular do que o tapete turco, ou reclinado em superfície mais áspera do que a poltrona ou o sofá. Vê-las na sala cheia de mulheres e homens bem trajados é como ver um negociante na Bolsa, ou um advogado no Fórum. Esta, proclamam cada gesto e palavra, é sua inata aparência; este é o seu local de trabalho, sua arena profissional. Claramente é aqui que elas praticam as artes nas quais foram desde a infância instruídas. Aqui talvez ganhem seu pão e obtenham suas vitórias. Mas seria tão fácil quanto injusto insistir na metáfora até levá-la a sugerir que a comparação fosse adequada e completa em todas as suas partes. Ela falha; mas onde falha e por que falha só pode ser descoberto com atenção e algum tempo.

Deve-se estar em condições de acompanhar estas senhorinhas em casa e de ouvir seus comentários, no quarto de dormir, à luz da vela; deve-se estar a seu lado quando acordam, na manhã seguinte; deve-se assistir às progressões que ambas fazem no decurso do dia. Quem tiver feito isso, e não só por um dia, mas por vários, será então capaz de aquilatar os valores das impressões que estarão por ser recebidas à noite, na sala de visitas.

Eis o tanto que se pode reter da metáfora já utilizada; que o cenário da sala representa para elas trabalho, não diversão. Tudo isso é tornado muito claro pela cena na carruagem que demanda à casa. Lady Hibbert é uma crítica severa de tais performances; ela notou se suas filhas estavam bem, se falaram bem, se se comportaram bem; se atraíram as pessoas certas, repelindo as que não convinham; e se a impressão que deixaram foi favorável no todo. A partir da multiplicidade e da minuciosidade dos seus comentários é fácil perceber que duas horas de entretenimento, para artistas dessa estirpe, são uma produção assaz delicada e complicada. Ao que parece, muito depende da maneira como elas se desempenham. As filhas respondem submissamente e se mantêm caladas, quer a mãe as reprove, quer elogie; e sua censura é acerba. Quando se acham finalmente sozinhas, elas que dividem um quarto modesto pelas dimensões no topo de uma casa grande e feiosa, ei-las que espicham os braços e passam a suspirar de alívio. Não é das mais edificantes a conversa que travam; é o ”ramerrame” dos homens de negócios; elas calculam suas perdas e ganhos e é claro que no fundo não têm nenhum interesse, a não ser o próprio. Podem porém ter sido ouvidas a papaguear sobre livros e pinturas e peças, como se fosse a essas coisas que dessem mais importância; discuti-las era a única razão de uma ”festa”.

Observar-se-á também, nessa hora de franqueza pouco atraente, algo que é bem sincero também, embora de modo algum desairoso. As irmãs gostavam muito e abertamente uma da outra. Na maioria dos casos, sua afeição tomou a forma de uma simpatia instintiva que é tudo o que se quiser, menos sentimental; suas esperanças e medos são, sem exceção, partilhados; trata-se porém de um sentimento legítimo, profundo, malgrado seu exterior tão prosaico. Elas são rigorosamente honestas em todas as transações que efetuam juntas; e há até mesmo algo de cavalheiresco na atitude da irmã mais nova para com a mais velha. Sendo essa a mais fraca, por ser a que já tem mais idade, deve sempre ficar com a melhor parte. Há algo de tocante também na gratidão com que Phyllis aceita tal vantagem. Todavia já está ficando tarde e, em atenção às próprias peles, essas moças tão metódicas lembram agora uma à outra que já é hora de apagar a luz.

A despeito da prévia reflexão, não são elas avessas a dormir mais um pouco, depois que as chamam de manhã. Rosamond no entanto se levanta e sacode Phyllis. ”Phyllis, vamo-nos atrasar para o café.”

Deve ter sido de certo peso o argumento, porque Phyllis pulou fora da cama e começou a se arrumar em silêncio. A pressa porém não impediu que elas vestissem suas roupas com grande esmero e destreza, sendo o resultado minuciosamente inspecionado por ambas, cada qual a seu turno, antes de descerem. O relógio batia nove horas quando entraram na copa: o pai, que já estava lá, perfunctoriamente beijou suas duas filhas, passou sua xícara para o café, leu seu jornal e sumiu. Foi uma refeição silenciosa. O desjejum de lady Hibbert era feito no quarto; mas elas, depois do seu, tinham de visitá-la para receber as ordens do dia; enquanto uma tomava notas para a mãe, ia a outra falar com a cozinheira para combinar o almoço e o jantar. Às onze horas ficaram livres, por enquanto, e reencontraram-se no quarto de estudo, onde a irmã mais nova, Doris, de 16 anos, escrevia uma dissertação em francês sobre a Magna Carta. Suas queixas pela interrupção – posto que ela já sonhasse com uma aprovação escolar – não fizeram jus a honrarias. ”Temos de ficar por aqui, porque não há outro lugar para nós”, observou Rosamond. ”Não precisa pensar que queremos sua companhia”, acrescentou Phyllis. Mas tais reparos foram ditos sem nenhum azedume, como simples e repisados chavões da vida cotidiana.

Contudo, em deferência à irmã, Phyllis pegou um volume de Anatole France, e Rosamond abriu os Estudos gregos de Walter Pater. Por alguns minutos elas leram em silêncio; uma criada depois bateu na porta, esbaforida, com o recado de que ”madame estava chamando as senhoritas na sala”. Todas duas resmungaram; Rosamond se ofereceu para ir sozinha; Phyllis disse que não, que ambas eram vítimas; e, perguntando-se qual seria a incumbência, lá se foram, de mau humor, escada abaixo. Lady Hibbert, impaciente, aguardava-as.

”Oh, enfim vocês chegaram!”, exclamou ela. ”Seu pai mandou dizer que convidou mr. Middleton e sir Thomas Carew para almoçar. Que amolação ele nos arrumou, não é? Não consigo imaginar por que os terá convidado, e almoço não há – e já vi que você não providenciou as flores, Phyllis; e quero que você, Rosamond, ponha uma gola nova no meu vestido marrom. Ah, meu Deus, como os homens são imprevidentes!”

As filhas estavam acostumadas a essas insinuações contra o pai: ficavam em geral do seu lado, mas não o diziam nunca.

Afastavam-se agora, em silêncio, nas suas missões à parte: Phyllis teve de sair para comprar flores e um prato extra para o almoço; Rosamond sentou-se para costurar.

Mal terminaram suas tarefas a tempo de se vestir para o almoço; mas à 1h30 adentravam, sorridentes e rosadas, pela grande e pomposa sala de visitas. Mr. Middleton era secretário de sir William Hibbert; um jovem em boa situação e com perspectivas, tal como o definia lady Hibbert, que poderia ser incentivado. Sir Thomas, funcionário da mesma repartição, era uma parte elegante do conjunto, com sua solidez, sua gota, mas sem nenhuma importância individual.

Durante o almoço animou-se um pouco a conversa entre mr. Middleton e Phyllis, enquanto os mais velhos, em sonoras vozes profundas, diziam banalidades. Rosamond se manteve meio calada, como de seu hábito; a especular sutilmente sobre o caráter do secretário que poderia vir a ser seu cunhado; e a conferir certas teorias que ela então já fizera a cada nova palavra proferida por ele. Mr. Middleton, por franco consentimento, não passava de uma brincadeira da irmã, que se atinha aos limites. Se alguém conseguisse ler os pensamentos de Rosamond, enquanto ela escutava as histórias de sir Thomas sobre a década de 1860 na Índia, constataria que ela andava ocupada com cálculos de certo modo abstrusos; o Middletonzinho, como o chamava, não era lá de todo mau; tinha a cabeça boa; era bom filho, ela o sabia, e daria um bom marido. Além do mais, era abastado e faria sucesso na carreira. Mas dizia-lhe sua agudeza psicológica, por outro lado, que ele era curto de espírito, sem um pingo de imaginação ou de intelecto, no sentido em que isso era entendido por ela; conhecia muito bem sua irmã para saber que ela nunca amaria este homenzinho ativo e eficiente, embora fosse capaz de respeitá-lo. Era esta a questão: deveria casar-se então com ele? E esse era o ponto a que chegara quando lord Mayo foi assassinado;2 enquanto seus lábios murmuravam ohs e ahs de horror, seus olhos telegrafavam pela mesa: ”Fico na dúvida”. Se ela houvesse feito que sim com a cabeça, sua irmã já teria passado à prática daquelas artes pelas quais tantas propostas se têm consolidado. Entretanto Rosamond, sem saber ainda o necessário para tomar decisão, mandou um telegrama bem simples: ”Continue a jogar com ele”.

Virginia Woolf