quarta-feira, 14 de setembro de 2016

OUTROS CONTOS

«Beatriz 'Uma Palavra Enorme'», por Mario Benedetti.

«Beatriz 'Uma Palavra Enorme'»
Conto de Mario Benedetti

875- «BEATRIZ 'UMA PALAVRA ENORME'»

Liberdade é uma palavra enorme. Por exemplo, quando termina a aula, se diz que você está em liberdade. Enquanto dura a liberdade, você passeia, você brinca, você não tem por que estudar. Se diz que um país é livre quando uma mulher qualquer ou um homem qualquer faz tudo o que dá vontade. Mas até os países livres têm coisas muito proibidas. Por exemplo matar. Quer dizer, se pode matar mosquitos e baratas, e também vacas para fazer bife. Por exemplo, é proibido roubar, ainda que não seja tão grave que você fique com algum troco quando Graciela, que é minha mãe, me manda comprar alguma coisa. Por exemplo, é proibido chegar atrasado na escola, ainda que nesse caso tenha que fazer uma cartinha, ou melhor, Graciela tem que fazer uma cartinha justificando por quê. Assim diz a professora; justificando. 

Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se você não está presa, se diz que está em liberdade. Mas meu pai está preso e está na Liberdade, porque assim se chama a cadeia onde ele está já há muitos anos. A isso o tio Rolando chama que sarcasmo. Um dia, contei a minha amiga Angélica que a cadeia em que está meu pai se chama Liberdade e que o tio Rolando tinha dito que era um sarcasmo e a minha amiga Angélica gostou tanto da palavra que quando seu padrinho lhe deu um cachorrinho, ela colocou o nome dele de Sarcasmo. Meu pai é um preso, mas não porque tenha matado ou roubado ou chegado tarde na escola. Graciela diz que meu papai está em Liberdade, ou seja, preso, por suas ideias. Parece que meu pai era famoso por suas ideias. Eu também às vezes tenho ideias, mas ainda não sou famosa. Por isso, não estou em Liberdade, ou seja, não estou presa. Se eu estivesse presa, queria que minhas duas bonecas, a Toti e a Mónica, fossem também presas políticas. Porque eu gosto de dormir abraçada pelo menos com a Toti. Com a Mónica nem tanto, porque ela é muito malcriada. Mas eu nunca bato nela, sobretudo para dar esse bom exemplo à Graciela. 

Ela me bateu poucas vezes, mas quando me bate eu queria ter muitíssima liberdade. Quando ela me bate ou me chama a atenção eu lhe chamo Ela, porque ela não gosta que eu fale assim. É claro que eu tenho que estar muito alunada para chamá-la Ela. Se, por exemplo, vem meu avô e me pergunta onde está sua mãe, e eu respondo ela está na cozinha, todo mundo já sabe que eu estou alunada, porque se não estou alunada digo só Graciela está na cozinha. Meu avô sempre diz que eu saí a mais alunada da família e isso me deixa muito contente. Na verdade, Graciela também não gosta muito que eu a chame de Graciela, mas eu chamo porque é um nome lindo. Só quando estou muito apaixonada, quando eu estou adorando muito e beijo e abraço e aperto e ela me diz ai menininha não me aperta assim, então sim, eu a chamo de mãe ou mamãe, e Graciela se comove e fica muito terninha e me acaricia os cabelos, e isso não seria assim tão bom se eu dissesse mãe ou mamãe por qualquer besteira. Ou seja: liberdade é uma palavra enorme. Graciela diz que ser um preso político como meu pai não é nenhuma vergonha. Que é quase um orgulho. Por que quase? Ou é orgulho ou é vergonha. Por um acaso seria bonito que eu dissesse que é quase uma vergonha? Eu estou orgulhosa, não quase orgulhosa, do meu papai, porque ele teve muitíssimas ideias, tantas e tantíssimas que o prenderam por causa disso. Eu acho que agora meu pai continuará tendo ideias, tremendas ideias, mas tenho quase certeza de que não vai contar pra ninguém, porque, se contar, quando ele sair da Liberdade para viver em liberdade, podem colocá-lo de novo na Liberdade. Estão vendo como é uma palavra enorme

Mario Benedetti 

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