terça-feira, 13 de setembro de 2016

OUTROS CONTOS

«A Mãe», por Italo Svevo.

«A Mãe»
Galinha e Pintainhos/ Beniamino Parlagreco

874- «A MÃE»

Num vale fechado por colinas arborizadas, sorridentes com as cores da primavera, erguem-se, uma ao lado da outra, duas grandes casas singelas, de pedra e cal. Pareciam feitas ambas pelas mesmas mãos, e até os jardins cercados de sebes, existentes diante de cada uma delas, eram das mesmas dimensões e forma. Seus habitantes,  porém, não tinham o mesmo destino.

Num dos jardins, enquanto o cão dormia na corrente e o camponês lavorava em volta do pomar, num cantinho, apartados, alguns pintinhos falavam de suas grandes experiências. Havia outros mais velhos no jardim, mas os pintinhos, cujos corpos conservavam ainda a forma do ovo de que haviam saído, gostavam de examinar entre eles a vida em que ora estavam e com a qual ainda não se acostumavam. Já haviam sofrido e gozado porque a vida de uns poucos dias é mais longa do que pode parecer a quem a experimenta em anos, e sabiam muitas coisas, já que haviam trazido consigo desde o ovo uma boa parte da grande experiência. De fato, mal avistaram a luz do dia, perceberam que era necessário examinar-se bem as coisas, primeiro com um olho depois com o outro, para se saber se deviam comê-las ou refugá-las.

E falavam do mundo e de sua vastidão, com aquelas árvores e sebes que os circundavam, e aquela casa tão grande e tão alta. Falavam de todas as coisas que estavam vendo,  mas que eram vistas melhor quando falavam delas.

Um  deles, de penugem amarelada, já saciado – e portanto desocupado – não se contentou em falar das coisas que se viam e relatou algo que a tepidez do sol lhe havia sugerido: — A verdade é que estamos bem graças ao calor do sol, mas soube que neste mundo podemos estar ainda melhor, o que me desagrada muito e lhes conto para que lhes desagrade também. A filha do camponês disse que somos infelizes porque não temos mãe.  Disse isto com um acento de tão forte compaixão que quase chorei.

Outro, mais branco e algumas horas mais novo que o primeiro, e que por isso se lembrava ainda com satisfação da doce atmosfera em que nascera, protestou: — Bem que tivemos mãe. É aquele pequeno armário sempre quente, mesmo quando faz o frio mais intenso, do qual saem os pintinhos já prontos.

O amarelo, que já trazia havia muito gravadas na alma as palavras da camponesa, e tivera portanto tempo de ampliá-las sonhando com aquela mãe a ponto de imaginá-la do tamanho do jardim e tão gostosa como a comida, exclamou, com um desprezo destinado tanto ao seu interlocutor quanto à mãe da qual este falara: — Se se  tratasse de uma mãe morta, todos nós a teríamos . Mas a mãe está viva e corre muito mais veloz do que nós. Talvez tenha rodas como a carroça do camponês. Por isso pode estar ao teu lado, sem que haja necessidade de chamá-la, para aquecer-te quando estiveres a ponto de sucumbir pelo frio deste mundo. Como deve ser bom ter ao nosso lado, de noite, uma mãe assim.

Interveio um terceiro pinto, irmão dos demais por ter saído da mesma máquina, porém que o havia fabricado um tanto diferente, o bico mais largo e as perninhas mais curtas. Achavam-no um pintinho mal-educado porque quando comia ouvia-se bater  seu bico no chão, quando na verdade se tratava de um patinho que entre os seus era tido por muito educado. Também na presença deste a camponesa havia falado a respeito de mãe. Isso acontecera naquela vez em que um pintinho morrera caído exausto de frio na grama, cercado pelos outros pintinhos que não o haviam socorrido por não sentirem o mesmo frio que os demais. E o patinho com o ar ingênuo que tinha sua carinha invadida pela base larga de seu bico, afirmou convicto que se tivessem mãe os pintinhos não podiam morrer.

O desejo de ter mãe logo infestou o galinheiro e se tornou mais vivo, mais inquietante na mente dos pintinhos mais velhos. Muitas vezes as doenças infantis atacam  os adultos e se tornam perigosas para eles, e as ideias também, às vezes. A imagem da mãe como se havia formado naquelas cabecinhas aquecidas pela primavera, desenvolveu-se desmesuradamente, e tudo o que era bom passou a chamar-se mãe, o tempo bom e a abundância, e quando os pintinhos, os patinhos e os peruzinhos sofriam, tornavam-se verdadeiros irmãos porque suspiravam pela mesma mãe.

Um dos mais velhos jurou um dia que havia encontrado sua mãe, pois não queria mais viver sem ela. Era o único no galinheiro que tinha um nome e se chamava Curra, porque quando a camponesa com as rações no avental chamava curra, curra, ele era o primeiro a correr. Já era vigoroso, um galinho em cuja alma generosa se albergava a combatividade. Esbelto e comprido como uma lâmina, ele exigia a mãe antes de tudo para que o admirasse: a mãe que diziam saber proporcionar todas as doçuras e, portanto, a satisfação das ambições e das vaidades.

Um dia, resoluto, Curra de um salto deslizou para fora da sebe que, compacta, contornava o jardim natal. Ao ar livre parou de súbito incontido. Onde encontrar a mãe na imensidão daquele vale sobre o qual um céu azul se sobrepunha ainda mais vasto? A ele, tão pequenino, não era possível procurar naquela imensidão. Por isso não se afastou muito do jardim natal, o mundo que conhecia, e, pensativo, deu-lhe a volta. Acabou assim chegando  diante da sebe do outro jardim.

— Se a mãe estivesse aqui dentro – pensou – eu logo a teria encontrado. Recuperando-se da perturbação que lhe causava o espaço infinito, não mais hesitou. Com um pulo atravessou também aquela sebe, e encontrou-se num jardim muito semelhante àquele donde viera.

Também ali havia um enxame de pintinhos muito novos que se debatiam na grama espessa. Mas ali havia também um animal que faltava no jardim anterior. Um pintinho enorme, talvez dez vezes maior que Curra, dominava no meio dos animaizinhos apenas cobertos de penugem, os quais – como logo se via – consideravam o grande e poderoso animal como seu chefe e protetor. E esse vigiava a todos. Dirigia uma admoestação àquele que se afastava demasiado, com dois sons muito semelhantes aos que a camponesa no outro jardim usava com os próprios pintinhos. Mas fazia algo mais. De tempos em tempos se aninhava sobre os mais fraquinhos cobrindo-os com todo o seu corpo, decerto para lhes transmitir seu próprio calor.

— Aquela é a mãe, — pensou Curra todo alegre, — Encontrei-a e agora não vou deixá-la mais. Como vai me amar! Sou mais forte e mais belo que todos os outros. E além disso vai ser fácil para mim obedecê-la, já que a amo. Como é bela e majestosa. Já estou amando-a e quero me submeter a ela. Vou até ajudá-la a proteger todos estes insensatos.

Sem olhar para ele a mãe o chamou. Curra aproximou-se achando que ele fora mesmo o chamado. Viu-a ocupada em remover a terra com rápidos golpes dos poderosos esporões, e parou curioso com aquele trabalho que ele presenciava pela primeira vez. Quando ela parou, um pequeno verme se retorcia diante dela no terreno cuja grama arrancara. Agora ela cacarejava enquanto os pintinhos em seu redor não compreendiam e a olhavam estáticos.

— Que tolos! – pensou Curra. – Não compreendem que ela quer que eles comam a minhoca. – E, sempre impelido pelo seu entusiasmo de obediência, precipitou-se rápido sobre a presa e a engoliu.

Aí então — pobre do Curra – a mãe lançou-se furiosa contra ele. Custou a entender o que estava acontecendo porque a princípio pensou que ela, que acabara de encontrá-lo, quisesse acariciá-lo efusivamente. Aceitaria reconhecido todas as carícias das quais nada sabia, e por isso admitia que até podiam ser más. Mas os golpes do duro bico, que choviam sobre ele, certamente não eram beijos e lhe afastaram qualquer dúvida. Quis fugir, mas o passaroco impediu-o e, passando-lhe à frente, saltou-lhe em cima fincando-lhe as garras no ventre.

Com um esforço imenso, Curra ergueu-se e correu para a sebe. Em sua louca corrida derrubou uns pintinhos que lá ficaram com as patinhas para o ar piando desesperadamente. Foi o que lhe permitiu salvar-se, pois sua inimiga se deteve um instante junto aos caídos. Chegando à sebe, Curra, com um salto, apesar de tantos ramos e espinhos, conseguiu levar seu pequeno e ágil corpo para fora.

A mãe, ao contrário, ficou presa no intrincado espesso da sebe. E lá ficou majestosa olhando como se de uma janela o intruso que, exausto, também havia parado.  Olhava-o com olhos redondos, rubros de raiva. —  Quem é você que se apropriou da comida que eu com tanto esforço havia escavado da terra?

— Eu sou o Curra —  disse humildemente o pintinho. — Mas quem é você que me machucou tanto?

Às duas perguntas houve uma só resposta: — Eu sou a mãe, — e desdenhosamente lhe voltou as costas..

Algum tempo depois, Curra, já agora um magnífico galo de raça, achava-se em outro galinheiro. E um dia ouviu que todos os seus novos companheiros falavam com afeto e saudades sobre a mãe.

Admirado de seu próprio e atroz destino, Curra disse com tristeza: — Minha mãe, ao contrário, era um uma fera hodienta e teria sido melhor para mim se nunca a tivesse conhecido.

Italo Svevo

Sem comentários: