quarta-feira, 3 de agosto de 2016

OUTROS CONTOS

«Eveline», por James Joyce.
«Eveline»
BD/ JPGalhardas

842- «EVELINE»

Ela sentou-se à janela para ver a noite invadir a avenida. Encostou a cabeça na cortina e o odor de cretone empoeirado encheu-lhe as narinas. Sentia-se cansada.

Poucas pessoas por ali passavam. O sujeito que morava no fim da rua passou a caminho de casa; ela ouviu seus passos estalando na calçada de concreto e em seguida rangendo sobre o caminho coberto com cascalho em frente às casas vermelhas. Tempos atrás havia ali um terreno baldio onde eles brincavam toda noite com os filhos dos vizinhos. Mais tarde um indivíduo de Belfast comprara o terreno e construíra casas — mas não eram casas pequenas e escuras como aquelas em que eles moravam; eram casas vistosas de tijolo e com telhados luzidios. As crianças que moravam na avenida costumavam reunir-se para brincar naquele terreno — crianças das famílias Devine, Water, Dunns, o pequeno Keogh, que era manco, ela e seus irmãos e irmãs. Ernest, no entanto, nunca brincava: já estava crescido. O pai dela muitas vezes enxotava-os do terreno com sua bengala de madeira preta; mas geralmente o pequeno Keogh montava guarda e dava o alarme quando avistava o homem se aproximando. Apesar de tudo consideravam-se bastante felizes naquela época. Seu pai ainda não estava tão mal e, além disso, a mãe ainda estava viva. Isso tudo acontecera há muito tempo; ela, seus irmãos e irmãs tinham crescido; a mãe estava morta. Tizzie Dunn também morrera e a família Water havia retornado à Inglaterra. Tudo se modifica. Agora era a vez dela ir embora, como os outros, ia sair de casa.

Casa! Correu os olhos pela sala, revendo todos os objetos conhecidos, por ela espanados uma vez por semana há tantos anos, e perguntou-se de onde vinha tanta poeira. Talvez jamais voltasse a ver aqueles objetos conhecidos dos quais jamais imaginou separar-se um dia. Contudo, durante todos aqueles anos ela nunca viera a saber o nome do padre cuja fotografia amarelada se encontrava pendurada na parede acima da pianola quebrada, ao lado da gravura em louvor à beata Margarida Maria Alacoque. O padre fora colega de escola do pai dela. Sempre que mostrava a foto a uma visita ele repetia mecanicamente a mesma frase:

— Ele está em Melbourne agora.

Concordado em partir, em deixar a própria casa. Teria sido uma decisão sensata? Tentou analisar cada lado da questão. Em casa ao menos tinha um teto e comida; vivia entre pessoas que conhecia desde criança. É bem verdade que o trabalho era pesado, tanto em casa quanto no emprego. O que diriam na loja quando descobrissem que ela fugira de casa com um sujeito qualquer? Que era uma idiota, talvez; e sua vaga seria preenchida através de um anúncio no jornal. Miss Gavan ficaria bem satisfeita. Sempre implicara com ela, especialmente quando havia gente em volta.

— Miss Hill, não está vendo estas senhoras esperando?

— Mexa-se, Miss Hill, por favor!

Ela não derramaria muitas lágrimas por deixar a loja.

Em seu novo lar, num país distante e desconhecido, tudo seria diferente. Estaria casada — ela, Eveline. As pessoas a tratariam com respeito. Não seria tratada como a mãe o fora. Mesmo agora, que estava com mais de dezenove anos, sentia-se às vezes amea¬çada pela violência do pai. Sabia que tinha sido isso a causa daquelas palpitações. Quando eram crianças ele nunca havia batido nela, conforme batia em Harry e em Ernest, porque ela era menina; mas ultimamente passara a ameaçá-la e a dizer o que faria com ela não fosse a lembrança da mãe falecida. E agora não havia mais ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que trabalhava com decoração de igrejas, estava quase sempre ausen¬te, viajando pelo sul do país. Além do mais, o inevitável bate-boca sobre dinheiro todo sábado à noite começava a deixá-la exausta, mais do que qualquer outra coisa. Ela sempre entregava o salário inteiro — sete shillings — e Harry sempre enviava o que podia mas o problema era conseguir arrancar dinheiro do pai. Ele dizia que ela desperdiçava dinheiro, que não tinha juízo, que não lhe daria o seu dinheiro suado para ser jogado fora, e dizia muito mais, pois geralmente ficava em péssimo estado nas noites de sábado. Contudo, acabava dando-lhe o dinheiro e perguntava-lhe se ia ou não comprar as provisões para o jantar de domingo. Então ela era obrigada a sair correndo para o mercado, segurando firme a bolsa preta de couro enquanto abria caminho na multidão com os cotovelos, e voltava para casa tarde, carregada de pacotes. Trabalhava pesado para manter a casa em ordem e garantir às duas crianças que haviam ficado sob os seus cuidados a oportunidade de frequentar a escola devidamente alimentadas. O trabalho era pesado — uma vida difícil — mas agora que estava prestes a deixar tudo para trás não considerava a vida que levava de todo indesejável.

Estava prestes a começar a explorar uma outra vida ao lado de Frank. Frank era um homem bom, viril, amoroso. Concordara em fugir com ele na barca noturna para tornar-se sua esposa e viver ao seu lado em Buenos Aires, onde ele possuía uma casa à espera dela. Com que nitidez se recordava da primeira vez em que o vira! Ele alugava um quarto numa casa na rua principal, que ela costu¬mava frequentar. Tudo parecia ter acontecido há apenas algumas semanas: ele parado no portão, com o boné no cocuruto da cabeça e o cabelo despenteado caído sobre a testa bronzeada. Então começaram a se conhecer melhor. Ele costumava esperá-la todas as noites à porta da loja para acompanhá-la até em casa. Levou-a para assistir “The bohemian girl” e ela ficou radiante por sentar-se ao lado dele num setor do teatro onde não costumava ficar. Ele adorava música e tinha uma voz razoável. As pessoas notavam que os dois estavam namorando e, sempre que ele cantava a canção sobre a jovem que amava o marinheiro, ela sentia um agradável acanhamento. Ele gostava de chamá-la de Poppens, carinhosamente. A princípio a ideia de ter um namorado não passara de uma empolgação, mas logo começou a gostar dele de verdade. Frank contara-lhe histórias de países distantes. Começara a vida como taifeiro ganhando uma libra por mês a bordo de um navio da Allan Line com destino ao Canadá. Disse-lhe também os nomes de todos os navios em que viajara bem como de diversas companhias de navegação. Velejara pelo estreito de Ma¬galhães e contara-lhe histórias a respeito dos terríveis habitantes da Patagônia. Estabelecera-se em Buenos Aires, dizia ele, e voltara à velha terra natal apenas para passar férias. O pai dela, obviamente, descobrira o namoro e a proibira de sequer dirigir-lhe a palavra.

— Conheço bem esses marinheiros — ele dizia.

Um dia o pai discutira com Frank e a partir de então ela fora obrigada a encontrar-se com o namorado às escondidas.

A noite aprofundava-se na avenida. O reflexo branco de duas cartas que tinha ao colo se tornava indistinto. Uma era para Harry; a outra, para o pai. Ernest era seu irmão preferido mas também gostava de Harry. O pai estava ficando velho, dava para notar; sentiria a falta dela. Às vezes, ele sabia ser agradável. Há pouco tempo, quando ficara acamada um dia inteiro, ele lera para ela um conto de terror e preparara-lhe umas torradas. Em outra ocasião, quando a mãe ainda estava viva, fizeram juntos um piquenique em Hill of Howth. Lembrava-se do pai colocando o chapéu da mulher para divertir as crianças.

Estava chegando a hora mas ela continuava sentada à janela, com a cabeça encostada na cortina, aspirando o cheiro de cretone empoeirado. Lá embaixo na avenida ouvia um realejo tocando. Conhecia a canção. Estranho que o realejo surgisse ali naquela noite, como que para lembrá-la da promessa que fizera à mãe, de preservar o lar unido enquanto pudesse. Lembrou-se da noite em que a mãe morrera; era como se estivesse novamente no quarto fechado e escuro do outro lado do hall e lá fora ouvisse a melancólica canção italiana. Na ocasião, deram seis pence ao tocador de realejo e pediram-lhe que fosse embora. Lembrou-se do pai voltando ao quarto da enferma com um andar emproado, exclamando:

— Italianos desgraçados! O que eles querem aqui?

Enquanto divagava, a visão deplorável da vida que a mãe levara tocou-a no fundo da alma — uma vida de sacrifícios banais culminando em loucura. Estremeceu quando voltou a ouvir a voz da mãe repetindo com uma desvairada insistência:

—Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!

Levantou-se num sobressalto de pavor. Fugir! Precisava fugir! Frank a salvaria. Daria uma vida a ela, talvez, quem sabe, até amor. E ela queria viver. Por que haveria de ser infeliz? Tinha direito à felicidade. Frank a tomaria nos braços, a abraçaria. Ele a salvaria.

Lá estava ela no meio da multidão ondulante na estação de embarque de North Wall. Ele segurava-lhe a mão e ela sabia que estava se dirigindo a ela, repetindo alguma coisa a respeito das passagens. A estação estava repleta de soldados carregando malas marrons. Através dos largos portões do embarcadouro ela podia ver o vulto negro do navio, atracado ao longo do cais com as vigias iluminadas. Ela nada respondia. Sentia o rosto pálido e frio e, num labirinto de aflição, rezou pe­dindo a Deus que lhe guiasse, que lhe apontasse o caminho. O navio lançou dentro da névoa um silvo longo e triste. Se partisse, amanhã estaria no mar ao lado de Frank, navegando em direção a Buenos Aires. As passagens dos dois já estavam compradas. Seria possível voltar atrás depois de tudo o que ele fizera por ela? A aflição que sentia lhe provocava náuseas e ela continuava a mover os lábios rezando fervorosamente em silêncio.

Um sino repicou em seu coração. Deu-se conta de que ele lhe agarrara a mão:

— Vem!

Todos os mares do mundo agitavam-se dentro de seu coração. Ele a estava levando para esses mares: ele a afogaria. Agarrou-se com as duas mãos às grades de ferro.

— Vem!

Não! Não! Não! Era impossível. Suas mãos agarraram-se ao ferro em desespero. No meio dos mares ela deu um grito de angústia!

— Eveline! Evvy!

Ele correu para o outro Lado do cordão de isolamento e a chamou, para que o seguisse. Gritaram para que fosse em frente, mas ele continuava a chamá-la. Ela o encarava com o rosto pálido, passivo, como um animal indefeso. Seus olhos não demonstravam qualquer sinal de amor, saudade, ou gratidão.

James Joyce

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