segunda-feira, 9 de março de 2015

OUTROS CONTOS

«Pavana dos Infantes», conto poético por Gerardo Mello Mourão.

«Pavana dos Infantes»
Poeta e Escritor Mello Mourão

440- «PAVANA DOS INFANTES»
 
Subiam aos meus joelhos e diziam:

— "Pai, naquele dia, entre bandeiras e clarins, tu entravas 
na Plaza de Toros. E depois de trinta verônicas, os olhos 
fulgurando mais do que os bordados de teu traje de toureiro, 
com a mesma espada e o mesmo punho com que teu avô 
atravessava a ilharga dos infiéis, atravessaste o coração de um 
touro". 

E como eu lhes dissesse, espantado, que nada disso 
acontecera e tudo não passava de um poema de Olivério Girondo, 
— "claro — contestaram. De há muito te plagiam os poetas e 
as lendas. Desde o tempo em que as ninfas se entregavam a 
Orfeu e nos bosques da Grécia tua lira chorava entre flautas 
partidas, entre avenas, o pranto da lamentação por Linos. 

Não te lembras, então, dos sombreros na arena, das mantilhas, 
das rosas e da orelha do touro te sangrando entre 
os dedos? E te esqueceste do cravo e da mão que o lançou? Pois 
foi a mesma que te enlaçou a cintura e te levou à alcova e 
em troca de seu cravo 
lhe plantaste no ventre a rosa de teus filhos. 
Olha para nós!" 

E como eu lhes dissesse que era fantasia aquilo, 
— "claro —, volveram. Tudo é fantasia em teus olhos de fei- 
ticeiro, em tuas 
mãos de taumaturgo. 
Pois não te lembras que um dia eras tu mesmo 
um touro 
e carregaste no lombo 
uma rapariga 
e de sua graça e de tua 
fúria 
nos fizeste? 
Por isso ainda às vezes 
quando escarvas o chão enfurecido, 
ela 
desmaia de novo sobre ti." 

Como eu tentasse contar-lhes a história da cegonha 
e um tom de lendo me tremesse a voz, 
— "claro — tornaram. Tudo é lendo em tua vida e tu mesmo és 
a maior dos lendas. Pois nem sempre te ocupaste de touros. Não 
te lembras, então, quando desabrochaste em cisne 
e boiando no lago o corpo liso, 
o colo arredondou-se e mergulhou 
e boiavam também entre as águas as algas 
e o pêssego de Leda à flor da espuma 
e ali surgimos, 
sobre os ombros o mesmo 
orvalho que escorreu 
dos cabelos de Vênus Calipígia." 

E como eu lhes dissesse que era apenas uma história improvável 
e antiga da mitologia, 
— "claro — exclamaram. És 
improvável o antigo como os deuses, 
imemorial; e 
tudo é mitologia: 
teus dias, tuas noites e um dia 
os outros deuses 
invejosos de ti te amarraram a um monte e 
as águias vinham almoçar teu fígado: 
mas és mágico e forte e rompeste os grilhões e 
disfarçado em criança 
tuas irmãs te enviaram à ternura 
da filha do Faraó, 
a bordo de uma cesta sobre as ondas 
de uma valsa ou de um Nilo. E 
cresceste e conduziste 
um Povo 
e atravessaste 
um mar 
e tiraste 
água da rocha. 
O teu cajado elementar fendeu os elementos 
e um Deus te pediu audiência na montanha." 

Como eu lhes dissesse que não ficava bem inserir-me 
na Bíblia, 
— "claro — tornaram. Se 
teu primeiro embarque foi no Gênesis 
e em todas as esquinas te apontam 
e apenas se confundem sem saber se 
chefiaste o prodigioso motim dos anjos rebeldes 
ou se 
és o próprio Miguel 
ou se 
ao sopro do Senhor floresceste do barro 
como de 
tua costela e teu sono o enxerto da beleza 
a que 
enxertaste depois com nosso riso." 

Como eu lhes dissesse que 
nas esquinas apenas me davam boa noite e 
não me envolvessem com anjos nem Adão, 
— "claro — insistiram. 
Nem teu rosto disfarça o Querubim 
nem 
o enigma de teus olhos a saudade do Paraíso de onde 
foste expulso, 
para onde 
queres sempre connosco retornar 
no carro de Eliseu." 

Como eu lhes dissesse que sou apenas passageiro de um 
automóvel alemão e não espero pelos carros de fogo, 
— "claro — explicaram. 
São eles que te esperam como outrora, quando vinhas da caça, 
o palafrém, ou quando, 
coberto de sangue e de poeira, 
voltavas da batalha entre os barões feridos 
ou dos muros de Tróia onde rugia 
o ciúme de Helena que roubaras 
para termos 
um ventre de princesa onde medrar." 

Como eu lhes dissesse que sua mãe era uma honrada 
burguesa recolhida à mansidão do lar, 
— claro — tornaram. Não te lembras 
do dia em que a raptaste de tudo e de si mesma 
e ainda agora a conservas 
butim do coração 
na pilhagem de todos os desejos. 
E é por ela que colhes 
da parede a bandurra pendurada 
e danças no pátio e contos 
tua cantiga andaluza com as mãos nos quadris."

Como eu lhes dissesse que não sei cantor e que jamais 
dancei, nem mesmo a valsa humilde dos domingos, 
— "claro — explicaram. Pois 
a tua é a dança patética e 
pregado na cruz tu a dançaste 
quando 
salvaste o mundo."

Como eu lhes dissesse que bastava desse jogo e não 
ousassem blasfêmia e sacrilégio, 
"— claro — exclamaram. 
Tudo é blasfêmia 
e tudo é sacrilégio e somos nós mesmos 
em teus joelhos 
testemunho sacrílego e prematuro 
de tua ressurreição." 

E numa risada gaia me saltavam dos joelhos e eram, na algazarra 
matinal 
meus filhos 
e tuteando o rosto me encontravam 
as feições do pai.

Gerardo Mello Mourão

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