quarta-feira, 25 de março de 2015

OUTROS CONTOS

«Não Digam a Ninguém», por António Alçada Baptista.

«Não Digam a Ninguém»
Por António Alçada Baptista

455- «NÃO DIGAM A NINGUÉM»

«Foi assim: ninguém tinha o telefone do Herberto Helder, eu só sabia o nome da rua porque tenho muita dificuldade em decorar números. Foi então que a Clara propôs irmos à procura do poeta na rua que eu tinha. Só havia dois prédios de habitação. Um deles era quase uma torre e tinha um painel de campainhas. A Clara tocou numa delas ao acaso. Daquela gradinha de rede veio uma voz. «Quem é?». A Clara perguntou se era da casa do poeta Herberto Helder. «Mas quem é?». Ela disse o meu nome. Então a porta abriu-se e nós subimos. 

A Olga estava à entrada da casa. Eu gosto muito da Olga, primeiro por ela e depois porque nos toma conta do Herberto. Digamos que ele faz parte do nosso Património e ela é a Conservadora. Eu disse-lhe baixinho - Olga, o Herberto ganhou o Prémio Pessoa, são sete mil contos. Como é que isto vai ser?

Ela fez-me uma cara de conformação e só com um gesto de cabeça fiquei a saber que ele não ia aceitar.

O Herberto estava na sala. Falou à Clara e depois a mim.

Eu disse, meio a brincar meio a sério: - Vimos numa difícil missão...

Ele, com toda a simplicidade dele, disse-me logo que não, calculando que era um prémio.

Não foi possível demovê-lo e sentimos que aquilo era tão fundo e tão importante para ele que não devíamos insistir. Ele disse:

- Vocês não digam a ninguém e dêem o prémio a outro...

- Não pode ser, o júri escolheu-te a ti, a decisão está tomada; respeitamos que digas que não...

Ele ainda acrescentou:

- Peço que vocês sejam meus mandatários e digam ao júri que eu agradeço mas não posso aceitar.

Eu queria transmitir bem que não havia aqui nenhuma arrogância: a sua recusa não era contra ninguém. Era uma decisão do seu eu mais íntimo, que logo nos mereceu o maior respeito. Eu só lhe disse: - Eu já gostava de ti e vi agora que é possível ainda gostar mais...

A Clara falou muito com ele porque ambos gostavam de se conhecer. Ela sabe fazer conversas inteligentes como se fossem banais. A certa altura viemos embora com alguma comoção por dentro e desabafámos no carro:

- Já ninguém faz isto...

- Todos ganhámos este prémio. Quando a regra é a procura de dinheiro, é bonito que um homem pobre dê exemplos assim.

Eu, confesso que passou pela cabeça de um bocadinho de mim que ele pudesse aceitar o prémio. Sempre eram sete mil contos. Talvez uma segurança até ao fim da vida. A verdade é que quase me apeteceu voltar atrás e pedir-lhe desculpa por este «mau pensamento». Mas eu era um homem feliz: o Herberto não nos deixou ficar mal...»

António Alçada Baptista

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