terça-feira, 24 de março de 2015

OUTROS CONTOS

«Manuscrito», por Jules Verne.
«Manuscrito»
Jules Verne

454- «MANUSCRITO»

A minha obra ficaria incompleta se, em apêndice à Viagem ao Centro da Terra, não houvesse o breve Regresso à Superfície da Terra que hoje venho dar-vos. Foi para o escrever que abandonei, transitoriamente, o formoso túmulo em que me inumaram, e, envergando as roupas do guarda deste cemitério (a quem lego, a título de indemnização, os direitos desta carta), fiz uma peregrinação pelo mundo. Tudo vi. E bem escuso descrever-vos as novidades que encontrei, pois sobejamente as conheceis.

O meu propósito é outro. À semelhança do que os tártaros fizeram a Miguel Strogoff, momentos antes de lhe chegarem aos olhos a lâmina incandescente, quero gritar-vos: Abri os olhos! Abri-os bem, pois estais, como ele, em riscos de cegueira!

Em breve sabereis que há vida na Lua. Quando? Na noite de lua-nova em que fizerdes explodir no espaço, qual gigantesco very light, uma das vossas bombas termo-nucleares. Então vereis os segredos da face desconhecida da Lua que, pelo facto da velocidade de rotação desse satélite ser igual à de translação, tem estado, desde o princípio dos tempos, mergulhada em sombra para os habitantes da Terra. E conhecereis que miríades de estranhos seres habitam essa face, deslocando-se, sem parança, no sentido do poente, logo que a luz do Sol se avizinha do horizonte do ponto em que estão. Porquê? Porque a pequena massa da Lua, a natureza do seu solo, a sua menor superfície em relação à Terra, bem assim como a maior proximidade do Sol a que se encontra uma parte da órbita que descreve tornam a vida incompatível com a temperatura que atinge o solo da face iluminada. Daí que toda uma legião de seres, anaeróbios mas corpulentos, corra incessantemente atrás da sombra. E, porque a velocidade de rotação e translação da Lua é suficientemente pequena para o permitir, assim vão vivendo numa sucessão de pequenos altos em que se nutrem dos fungos e cogumelos que cobrem as paredes das inúmeras cavernas e galerias de que a Lua —gigantesca pedra-pomes — está minada, e em que descansam, se reproduzem e enterram (ou enluam) os mortos, — autênticos caixeiros-viajantes da vida que são.

Mas vós, meus queridos leitores, fazeis hoje, mentalmente, o mesmo! Pois que é a vossa vida senão uma corrida sem tréguas na peugada da sombra que a sinistra bola de fogo das explosões atómicas projecta a milhares de quilómetros de distância? Todos viveis na insegurança da noite em que poderá raiar, subitamente, o clarão sinistro da fissuração dos átomos. Essa admirável conquista da ciência, que o meu Nemo anteviu, e que tão amplas perspectivas de futuro poderia rasgar aos vossos olhos — não apontei há pouco senão uma das mais ínfimas! — tornou-se um pesadelo. Por isso recolhi ao túmulo, angustiado. E só consentirei em reassumir a posição, face à posteridade, que a vossa gentileza me talhara no mármore, no dia em que tiverdes conjurado a ameaça que paira sobre a Humanidade, eliminado o perigo duma guerra!

Amarguradamente vosso,

Júlio Verne

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