domingo, 30 de novembro de 2014

ESPECIAL OUTROS CONTOS

«O Gigante Egoísta», por Oscar Wilde.

«O Gigante Egoísta»
Conto de Oscar Wilde

345- «O GIGANTE EGOÍSTA»

Todas as tardes, ao saírem do colégio, as crianças costumavam a ir brincar no jardim do Gigante.

Era um jardim lindo e grande, com grama verde e suave. Aqui e ali, sobre a grama, apareciam flores belas como estrelas, e havia doze pessegueiros que, na primavera, abriam-se em flores delicadas em tons de rosa e pérola, e davam ricos frutos no outono. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente que as crianças costumavam parar de brincar para ouvi-los.

- Como nos sentimos felizes aqui! - exclamavam elas.

Certo dia ele voltou. Ele tinha andado visitando seu amigo, o ogre da Cornualha, e ficara sete anos com ele. Depois de sete anos ele já havia dito tudo que tinha o que não tinha para dizer, já que sua conversa era limitada, e resolveu voltar para seu próprio castelo. Ao chegar, ele viu as crianças brincando no jardim.

- O que é que vocês estão fazendo aqui? - gritou ele com uma voz muito ríspida, e as crianças saíram correndo.

- O meu jardim é meu jardim - disse o Gigante. - Qualquer um pode compreender isso. Eu não vou permitir que ninguém brinque nele, a não ser eu mesmo.

De modo que ele construiu um muro alto em torno do jardim e colocou um cartaz de aviso.

«OS INVASORES SERÃO PROCESSADOS!»

Ele era um Gigante muito egoísta.

As pobres crianças agora não tinham mais onde brincar. Elas tentaram brincar na estrada, mas a estrada era muito poeirenta e cheia de pedras duras, e eles não gostavam. Começaram a passear em torno do muro depois das aulas, conversando sobre o lindo jardim que ficava lá dentro. "Como éramos felizes lá!", diziam uma ás outras.

Então chegou a Primavera, e por todo o país apareceram pequenas flores e pequenos pássaros. Só no jardim do Gigante Egoísta é que continuava a ser inverno. Os passarinhos não gostavam de cantar lá, porque não havia crianças, e as árvores se esqueceram de florescer. Uma vez uma flor bonita chegou a brotar, mas ao ver o cartaz de aviso ficou com tanta pena das crianças que se enfiou de volta no chão e adormeceu. Os únicos que estavam contentes eram a Neve e o Gelo.

- A Primavera se esqueceu deste jardim - eles exclamaram -, de modo que podemos viver aqui o ano inteiro.

A neve cobriu toda a grama com seu manto branco, e o Gelo pintou todas as árvores de prata. Eles convidaram o Vento do Norte para se hospedar com eles, e ele veio. Todo enrolado em peles, rugia o dia inteiro pelo jardim, derrubando as chaminés com seu sopro.

- Este lugar é ótimo - disse ele. - Nós precisamos convidar o Granizo para vir fazer uma visita.

E o Granizo apareceu. Todos os dias, durante três horas, ele matracava no telhado do castelo até quebrar quase todas as telhas, e depois corria, dando voltas pelo jardim o mais depressa que podia. Sempre vestido de cinza, soprava gelo para todo lado.

- Não entendo porque as Primavera está demorando tanto a chegar! - disse o Gigante Egoísta, sentado junto à janela e olhando para seu jardim frio e branco. - Espero que o tempo mude logo.

Mas a Primavera não apareceu, nem o Verão. O Outono trouxe frutos dourados para todos os jardins, mas nenhum para o do Gigante.

- Ele é muito egoísta - disse o Outono.

De modo que ali ficou sendo sempre inverno, e o Vento Norte e o Granizo, a Neve e o Gelo dançavam em meio às árvores.

Certa manhã, o Gigante estava deitado, acordado, na cama, quando ouviu uma música linda Soava com tal doçura em seus ouvidos que ele até pensou que deviam ser os músicos do Rei que passavam. Na realidade era apenas um pequeno pintarroxo cantando do lado de fora de sua janela, mas já fazia tanto tempo que ele não ouvia um só passarinho em seu jardim que aquela parecia ser a música mais bonita do mudo. E então o Granizo parou de dançar sobre a cabeça dele, e o Vento do Norte parou de rugir, e um perfume delicioso chegou até ele, através da janela aberta.

- Acho que finalmente a Primavera chegou - disse o Gigante. - E, pulando da cama, olhou par fora.

O que ele viu?

A visão mais bonita que se possa imaginar. Por um buraquinho no muro as crianças haviam conseguido entrar, e estavam todas sentadas nos ramos das árvores. Em todas as árvores que ele conseguia ver havia uma criança. E as árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta que se cobriram de flores, balançando delicadamente os galhos, por cima da cabeça da meninada. Os passarinhos voavam de um lado para outro, chilreando de prazer, e as flores espiavam e riam. Era uma cena linda, e só em um canto é que continuava as ser inverno. Era o canto mais distante do jardim, e nele estava de pé um menininho. Ele era tão pequeno que não conseguia alcançar os ramos da árvore, e ficou andando em volta dela, chorando, muito sentido. A pobre árvore continuava coberta de neve e de gelo, e o Vento do Norte soprava e rugia acima dela.

- Sobe logo, menino! - dizia a Árvore, curvando os ramos o mais que podia. Mas o menino era pequeno de mais.

E o coração do Gigante se derreteu quando ele olhou lá para fora.

- Como eu tenho sido egoísta! - disse ele. - Agora já sei porque a Primavera não aparecia por aqui. Eu vou colocar aquele menininho em cima daquela árvore, depois vou derrubar o muro, e meu jardim será um lugar onde as crianças poderão brincar para sempre e sempre.

Ele estava realmente arrependido do que tinha feito. E assim, desceu a escada, abriu a porta da frente com toa a delicadeza, e saiu para o jardim. Mas quando as crianças o viram ficaram tão assustadas que fugiram, e o inverno voltou ao jardim. Só o menininho pequeno é que não fugiu, porque seus olhos estavam marejados de lágrimas e não viu o Gigante chegar. E o Gigante aproximou-se de mansinho por trás dele, pegou delicadamente em sua mão e o colocou em cima da árvore. A árvore imediatamente floresceu, e os passarinhos vieram cantar nela; e o menininho esticou os braços, passou-os em torno do pescoço do Gigante e o beijou. Quando viram eu o Gigante não era mais mau, as outras crianças voltaram correndo, e com elas veio a Primavera.

- Agora o jardim é de vocês, crianças - disse o Gigante. E pegando um imenso machado, derrubou o muro. Quando toda a gente começava a iro para o mercado, ao meio-dia, lá estava o Gigante brincando com as crianças no jardim mais bonito que todos já haviam visto.

Elas brincavam o dia inteiro, mas quando chegava a noite despediam-se do Gigante.

- Mas onde está seu companheirinho? - perguntou ele. - O menino que eu botei em cima da árvore.

O Gigante gostava dele mais do que de todos os outros, porque ele lhe havia dado um beijo.

- Nós não sabemos - responderam as crianças. - Ele foi embora.

- Vocês têm de dizer a ele par anão deixar de vir aqui amanhã - disse o Gigante.

Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava, e que jamais o haviam visto antes. O Gigante ficou muito triste.

Todas as tardes, quando acabavam as aulas, as crianças iam brincar como Gigante. Mas o menininho de quem o Gigante gostava nunca mais apareceu. O Gigante era muito bondoso com todas as crianças, mas sentia saudades de seu primeiro amiguinho, e muitas vezes falava nele.

- Como eu gostaria de vê-lo! - costumava dizer.

Os anos se passaram, e o Gigante ficou mais velho e fraco. Ele já não conseguia brincar direito, e então ficava sentado em uma poltrona enorme, olhando as crianças que brincavam e admirando seu jardim.

- Tenho tantas flores lindas - dizia ele -, ma as crianças são as flores mais bonitas de todas.

Certa manhã de inverno, ele olhou pela janela enquanto se vestia. Agora já não odiava o inverno, pois sabia que este era apenas a Primavera enquanto dormia, e que as flores estavam descansando.

De repente ele esfregou os olhos, espantado, e olhou, e olhou, e olhou. Era por certo uma visão maravilhosa. No cantinho mais distante do jardim havia uma árvore toda coberta de flores brancas. Seus ramos eram dourados, carregados de frutos de prata, e debaixo deles estavam o menininho que ela amava.

O Gigante correu pelas escadas, com a maior alegria, e saiu para o jardim. Cruzou depressa o gramado e chegou perto do menino. E quando chegou bem perto, seu rosto ficou rubro de raiva, e ele disse:

- Quem ousou te ferir?

Nas palmas das mãos da criança estavam as marcas de dois pregos, como m haviam marcas de dois pregos em seus pezinhos.

- Quem ousou te ferir? - gritou o Gigante. - Dizei-me, para que eu possa tomar de minha grande espada para matá-lo.

- Não - respondeu o menino -, pois essas são as feridas do Amor.

Quem és? - perguntou o Gigante, e quando o temor apossou-se dele, ajoelhou-se diante da criança.

A criança sorriu para o Gigante e lhe disse:

- Você me deixou, certa vez, brincar em seu jardim, e hoje você irá comigo par ao meu jardim que é o Paraíso.

Naquela tarde, quando as crianças chegaram correndo, encontraram o Gigante morto, deitado debaixo da árvore, todo coberto por flores brancas.

Oscar Wilde

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

 ABBEY LINCOLN 
«Music Is the Magic»

PENSAMENTO...

Fernando Pessoa
Poeta Português

Pensamento...

A Nossa Crise Mental

- Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos — político, moral e intelectual? 

- A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico. Todo o povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente. A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo. 

O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita — como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova — o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima). 

Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si-próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise. 

As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 — fim da Renascença em nós e de nós na Renascença — deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto. 

Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.

Fernando Pessoa

OUTROS CONTOS

«A Famosa Rã Saltadora do Condado de Calaveras», por Mark Twain.

«A Famosa Rã Saltadora do Condado de Calaveras»
Poet'anarquista

344- «A FAMOSA RÃ SALTADORA DO CONDADO DE CALAVERAS»

A pedido de um amigo que me escreveu do leste, procurei o velho tagarela Simon Wheeler, para me informar sobre alguém chamado Leônidas W. Smiley. Eis o resultado: concluí que o tal Leônidas W. Smiley não existia e que o meu amigo jamais havia conhecido tal pessoa. Ele apenas imaginou uma armadilha para que o velho Wheeler se lembrasse do nome do notável Jim Smiley, prevendo então que despencaria em cima de mim longas e entediantes histórias. Se foi sua intenção, acertou.

Encontrei Simon Wheeler cochilando junto ao aquecedor da velha taverna no decadente acampamento dos mineiros de Angel. Era gordo e careca, com um sorriso desenhado no semblante tranquilo. Acordou me dando um bom dia. Então perguntei a ele sobre Leônidas W. Smiley, um reverendo e jovem ministro evangelista, que, segundo informações, havia residido no acampamento. Acrescentei ainda, ser muito importante para mim qualquer informação sobre ele.

Simon Wheeler arrastou uma cadeira para o lado da sua e me fez sentar. Iniciou então a sua monótona narrativa. Nenhuma vez sorriu ou franziu o cenho ou alterou a voz. Falou fluentemente, sempre gentil mas sem nenhum entusiasmo ou emoção. Durante toda a narrativa falou com franqueza e coração aberto, sem deixar vazar qualquer sentido de reprovação em qualquer das histórias sobre seus amigos, demonstrando claramente um grande respeito por eles, elevando-os à condição de gênios. Por mim, deixei que contasse toda a história sem interferir em nada.

“Reverendo Leónidas W. hum, reverendo Le… – bem, tinha um por aqui que atendia pelo nome de Jim Smiley no inverno de 49, talvez na primavera de 50, não me lembro bem, mas o que me fez pensar que era um ou outro é por me lembrar que o grande canal não estava ainda terminado quando ele chegou no acampamento; mas era um homem dos mais diferentes que já vi, sempre disposto a apostar em qualquer coisa, se conseguisse alguém para apostar contra; e se ninguém estivesse contra, ele ficava a favor. O que ele queria mesmo era apostar. E o incrível era sua sorte, porque mesmo assim ele quase sempre estava ganhando; sempre na espreita, esperando aparecer um motivo para jogar, e como lhe contei, não importava muito para que lado ele estava; nas corridas de cavalos, terminava sempre cheio do dinheiro ou completamente duro. Se tivesse uma briga de cachorros, lá ia ele; de gatos, apostava; de galinhas, também! Amigo, se tivesse dois passarinhos pousados na cerca, queria apostar qual voaria primeiro. Até às reuniões evangélicas ele ia pensando em apostar no pastor Walker, por ser ele o melhor pregador da região. Se visse uma lagarta indo para algum lugar, ia querer apostar com você quanto tempo ela levaria para chegar no seu destino, e se dispunha a seguir o bicho até o México, se fosse o caso, para saber o tempo que levou para chegar. Muitos aqui conheceram o Smiley e podem contar muitas coisas sobre ele. Amigo, não fazia diferença para ele – apostava em qualquer coisa o filho da puta. Quando a mulher do pastor Walker ficou doente, parecia que ia morrer, pois ficou assim muito tempo; numa manhã, dando com o pastor, o Smiley perguntou como ela estava e ele disse que ela estava melhorando – graças ao Senhor e sua infinita misericórdia – e com a bênção divina, logo estará completamente sarada. E o Smiley, disse em seguida: ‘Bem, eu arrisco dois dólares e meio como ela não vai ficar’.”

“Esse tal Smiley tinha uma égua – que os meninos apelidaram de ‘justos 15 minutos’, mas era só uma gozação, porque, você sabe, ela corria mais do que isso, – e ele costumava ganhar dinheiro com ela; bem, ela era lenta mesmo, tinha asma, diarreia, tuberculose, sei lá o que mais. Todos costumavam levar uma vantagem e ficar na frente pelo caminho, mas sempre no final da corrida a égua ficava excitada, meio desesperada, e disparava dando saltos e coices para todos os lados, levantando mais poeira do que um vendaval, e acabava sempre por passar a linha de chegada pelo menos um nariz à frente dos outros.”

“Ele tinha, também, um buldogue, pequeno, pelo qual ninguém lhe daria um centavo, parecia um vira-lata que só servia para roubar a comida dos menos avisados. Mas era só ouvir o tinir das moedas e o Smiley colocá-lo na rinha, que ele se transformava e ia direto morder as patas traseiras dos adversários e ficava agarrado ali, não mastigava, se me entende, só ficava agarrado até o dono do outro cachorro jogar a toalha, mesmo que demorasse um ano. Smiley sempre ganhou dinheiro com o cachorrinho, até o dia em que encontraram um cachorro que não tinha as pernas traseiras, amputadas por uma serra circular, e quando a briga já estava adiantada e o dinheiro casado é que se viu onde eles tinham se metido; o outro cachorro tinha tudo ao seu gosto e o cachorrinho, assustado e sem poder agir, acabou sofrendo muito com as mordidas do outro cão, que não tinha as pernas de trás. Olhou para Smiley com tristeza como a recriminá-lo por colocá-lo para lutar com um cachorro que não tinha as patas traseiras, exatamente onde sempre se agarrava tenazmente, deitou e morreu. Era um bom cachorro, Andrew Jackson era o seu nome, e ficaria famoso se tivesse vivido mais tempo, porque era gênio. Nem é preciso reforçar essa ideia, porque as lutas que fizera anteriormente demonstrava o seu talento. Sempre fico triste quando penso na última luta e como terminou.”

“Bem, Smiley tinha uns cãezinhos da raça terrier para caçar ratos, galos de briga e gatos selvagens, e tantos outros animais que você não pode imaginar o que ele não tinha para competir numa aposta. Um dia ele arranjou uma rã, levou-a para casa, disse que iria treiná-la e não fez outra coisa senão ensinar aquela rã a saltar pelo seu jardim. E pode apostar que ele ensinou. Bastava dar um toque no traseiro dela e você via aquela rã rodando pelo ar, como uma panqueca, podia vê-la dar saltos mortais, girar, e cair com as quatro patas, como um gato. Também a treinou para pegar moscas, forçando que ela praticasse com tal exagero que pegava as moscas à distância, com a maior facilidade. Smiley insistia em dizer que se podia ensinar qualquer coisa para uma rã que ela aprenderia e eu acredito nisso. Meu amigo, eu vi ele colocar Daniel Webster no chão – Daniel Webster era o nome da rã – e atiçar: ‘Moscas, Daniel, moscas!’, e no mesmo instante, mal dava para ver, ela já tinha pulado para cima do balcão, engolido a mosca, e voltado para a sua posição, já coçando a cabeça com uma das patas traseiras, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo para uma rã fazer. Em lugar nenhum você podia encontrar uma rã tão simples e modesta, apesar do seu talento. Saltar num terreno plano, então, ia mais longe do que qualquer outro animal da sua espécie. Smiley apostaria todo seu dinheiro no salto da sua rã. Ele tinha muito orgulho da sua rã, e podia mesmo ter porque pessoas que haviam viajado pelo mundo estavam de acordo que jamais haviam visto outra igual.”

“Bem, Smiley deixava a rã numa pequena gaiola, onde, de quando em vez, levava à cidade para apostar. Certo dia, um sujeito – desconhecido no acampamento – viu Smiley levando a gaiola e perguntou:

“‘O que leva aí nessa gaiola?'”

“Smiley respondeu, fingindo indiferença: ‘Podia ser um periquito ou um canário, mas não é não… é uma rã’.”

“O estranho pegou a gaiola, examinou-a com cuidado de um lado ao outro e falou: ‘Está certo, parece que é. E para que serve?'”

“‘Bem’, disse Smiley, calmamente. ‘Ela é muito boa em saltos – salta mais alto do que qualquer outra rã no Condado de Calaveras’.”
“O estranho pegou a gaiola de novo e examinou a rã novamente, depois a devolveu para Smiley, com expressão de dúvida: ‘Pelo que vejo essa rã parece igual a todas as rãs’.”

“ ‘Talvez você não veja,’ disse Smiley. ‘Talvez você entenda de rã, talvez não; talvez até você seja um especialista, talvez um amador. De qualquer jeito eu tenho a minha opinião e estou disposto a bancar 40 dólares que ela é capaz de saltar mais alto do que qualquer outra rã no condado de Calaveras’.”

“O estranho pensou a respeito e disse, com tristeza: ‘Bem, não sou daqui e não tenho uma rã, senão eu apostava’.

“Então Smiley propôs: ‘Tudo bem, tudo bem, você segura minha gaiola que vou arranjar uma rã para você.’ Na hora o estranho casou os seus 40 dólares e ficou esperando por Smiley.”

“Sentado ali um bom tempo, o estranho começou a matutar consigo mesmo e resolveu aproveitar a chance que lhe era oferecida. Sacou a rã da gaiola apertando-a até que abrisse a boca, então recolheu à mão-cheia um punhado de chumbo de caça que enfiou pela boca adentro da rã. Em seguida colocou o animal no chão, que ali ficou estático. Enquanto isso Smiley procurava junto ao brejo uma rã, para que o estranho pudesse apostar. Finalmente conseguiu, levou-a ao estranho, dizendo: ‘Agora, se você está pronto, coloque a sua rã junto ao Daniel, com as patas alinhadas que eu vou dar o sinal. E disse: ‘Um… dois… e… já!’ Cada apostador deu o seu toque por trás da sua rã, mas, enquanto a rã do brejo dava um salto para valer, Daniel apenas levantou os ombros – assim como fazem os franceses – sem conseguir se mover. Ficou plantado como uma igreja; era como se estivesse ancorado. Isso deixou Smiley intrigado e aborrecido, mas não podia imaginar o que estava acontecendo, é claro.”

“O estranho pegou o dinheiro e foi embora feliz, fazendo um sinal de positivo com o polegar. Mais adiante se voltou: ‘Bem’ – repetiu ele. ‘Não vejo nada nessa rã que a faça melhor que as outras’.”

“Smiley coçou a cabeça, procurando uma explicação para o acontecido, olhando Daniel e resmungou: ‘Eu me pergunto o que fez esse animal desistir. Que será que deu nela? O certo é que ela realmente está com um aspecto diferente, parecendo um saco de batatas’. Quando levantou Daniel logo percebeu o excesso de peso: ‘Opa, ela deve estar pesando mais de 5 libras!’ – exclamou, enquanto virava a rã de cabeça para baixo, e viu ela arrotar espalhando um bom punhado de chumbo de caça. Entendendo o que havia acontecido, ele partiu atrás do estranho disposto a tudo, mas não conseguiu encontrá-lo…”

Nesse momento do relato, Simon Wheeler ouviu alguém chamar seu nome lá de fora e se levantou para ver do que se tratava. Afastou-se dizendo: “Oh, amigo, fique onde está que volto num segundo.”

Mas vocês me perdoem, porque achei que as histórias que Simon me contava desse Jim Smiley nada tinha a ver com o reverendo Leônidas W. Smiley, nem me traria informações sobre ele, por isso me levantei para sair.

Na porta, Wheeler, o falante, voltava e me segurou pelo casaco, querendo continuar a contar os casos:

“Bem, esse tal Smiley tinha uma vaca caolha e sem rabo… só um coto, como uma banana…”

Mas aleguei falta de tempo, para não dizer de vontade, e não esperei para ouvir a respeito da pobre vaca e fui embora.

Mark Twain

sábado, 29 de novembro de 2014

REPESCANDO...

Repescando umas décimas que escrevi, e a propósito dos inúmeros casos de corrupção que vão sendo conhecidos dos portugueses (para muitos isto não é nada de novo, e outros há que vêm alertando a opinião pública para o flagelo da corrupção - leia-se crise que nos roubou todos os direitos consagrados e deixou o país na miséria e endividamento), mesmo assim querem nos fazer crer que vivemos acima das nossas possibilidades e que é o povo o grande culpado de toda esta situação de desastre económico. Até quando o povo vai aguentar esta mascarada encapotada?
Poet'anarquista
«Desigualdades Sociais»
O Flagelo da Corrupção

REFLEXÃO...

Décimas Populares

MOTE

Esta mascarada enorme
Com que o mundo nos aldraba,
Dura enquanto o povo dorme,
Quando ele acordar, acaba.

António Aleixo

Glosas

Demora esta gente pra acordar
Começa a ser grande o desleixo,
Ó grande poeta António Aleixo:
Quando vai o povo despertar?
De norte a sul ouço protestar
A desigualdade é enorme,
Muitos no país já passam fome
E uns poucos a enriquecer,
Só mesmo tu não queres ver
Esta mascarada enorme!

Promessas são aos centos
Em vésperas d’ eleições,
Esses enganosos camaleões
Logo esquecem os juramentos.
Começam por faltar alimentos
Triste carência em nós desaba,
E ainda quem de tal se gaba
Com tantos a ganhar menos…
Sofrem mais, os mais pequenos,
Com que o mundo nos aldraba.

Podes enganar muitas vezes
Mas não o tempo todo...
Deixar atolados no lodo
Sempre os mesmos fregueses?
A mentira tem seus reveses
E saciada, já pouco come,
No dia em que se transforme
E desperte do sono profundo…
Esse mau estado moribundo
Dura enquanto o povo dorme.

Nada é certo eternamente
Eis uma verdade ‘la Palice’,
Cair sempre na mesma idiotice
Não se caie seguramente.
Um idiota quando nos mente
Deixa escorrer saliva e baba,
E pra que ninguém disso saiba
Engole seu cuspo nojento…
Enganas o pobre sofrimento,
Quando ele acordar, acaba!

Matias José

«Eles comem tudo, e não deixam nada!»


OUTROS CONTOS

«À Deriva», conto de Horácio Quiroga.

«À Deriva»
Barcos à Deriva, por Elisha J. Taylor Baker

343- «À DERIVA»

O homem pisou algo brando e mole e, em seguida, sentiu a picada no pé. Saltou para frente, e ao se voltar com um palavrão, viu a jararacuçu que se recolhia sobre si mesma; preparava outro ataque.

O homem lançou uma rápida olhada a seu pé, de onde duas gotinhas de sangue engrossavam dificultosamente, e então sacou o facão da cintura. A víbora viu a ameaça, e fundiu mais a cabeça no centro mesmo de sua espiral; porém o facão caiu sobre ela, deslocando-lhe as vértebras.

O homem abaixou-se para olhar a mordida, limpou as gotinhas de sangue, e durante algum tempo contemplou. Uma dor aguda nascia dos dois pontinhos violeta, e começava a expandir-se por todo o pé. Apressadamente, amarrou o tornozelo com o lenço que trazia amarrado à cintura, e seguiu pela picada até seu rancho.

A dor no pé aumentava, e de repente, o homem sentiu dois ou três fulgurantes pontadas que como relâmpagos haviam-se irradiado da ferida, até a metade da panturrilha. Movia a perna com dificuldade; uma sede metálica na garganta, seguida de uma sede ardente, arrancou-lhe outro palavrão.

Chegou finalmente ao rancho, e abraçou a roda do moinho. O dois pontinhos violeta desapareciam agora na monstruosa inchação do pé inteiro. Parecia-lhe enfraquecida, e a ponto de ceder, de tão tensa. O homem quis chamar sua mulher, mas sua voz se quebrou num grunhido rouco de garganta ressecada. A sede o devorava.

— Dorotea! — conseguiu lançar um grito. — Me dá cachaça!

Sua mulher correu com um copo cheio, que o homem sorveu de três tragos. Porém não havia sentido gosto algum.

— Te pedi cachaça, não água! — rugiu de novo. — Quero cachaça!

— Mas é cachaça, Paulino! — protestou a mulher, espantada.  

— Não, me deste água! Quero cachaça, te digo!

A mulher correu outra vez, voltando com o garrafão. O homem bebeu um atrás do outro três copos, porém não sentiu nada na garganta.

— Bom, isto está feio... - murmurou então, olhando seu pé lívido e já com um brilho gangrenoso. Sobre a intensa atadura do lenço, a carne transbordava como uma pavorosa morcela.

As dores fulgurantes sucediam-se em relâmpagos contínuos, e chegavam agora à virilha. Além disso, a atroz sequidão da garganta que o esforço parecia esquentar mais, aumentava. Quando pretendia encorpar-se, um fulminante vômito manteve-o meio minuto com a testa apoiada na roda de madeira.

Mas o homem não queria morrer, e descendo à costa, subiu em sua canoa. Sentou-se na popa e começou a remar até o centro do Paraná. Ali, a correnteza do rio, que nas imediações do Iguaçu corre por seis milhas, o levaria antes de cinco horas a Tacurú-Pucú.

O homem, com fatigada energia, pode efetivamente chegar até o meio do rio; no entanto, ali suas mãos dormentes deixaram cair o remo na canoa, e por causa de um novo vômito — de sangue esta vez —, dirigiu um olhar ao sol que transpunha a montanha.

A perna inteira, até metade da coxa, era já um pedaço disforme e duríssimo que rompia a roupa. O homem cortou a ligadura e abriu a calça com a faca: a parte inferior desbordou inchada, com grandes manchas lívidas e terrivelmente dolorosas. O homem pensou que não poderia jamais chegar sozinho a Tacurú-Pucú, e decidiu pedir ajuda a seu compadre Alves, embora fizesse muito tempo estivessem intrigados um com o outro.

A correnteza do rio precipitava-se agora para a costa brasileira, e o homem pode facilmente atracar. Arrastou-se pela picada costa acima, porém a vinte metros, exausto, ficou estendido de costas.

— Alves! — gritou com a força que pode; e prestou atenção em vão.

— Compadre Alves! Não me negue este favor! — clamou de novo, levantando a cabeça do solo.

No silêncio da selva, não se ouviu um só rumor. O homem teve ainda forças para chegar até sua canoa, e a correnteza, apoderando-se dela de novo, levou-a à deriva.

O Paraná corre ali no fundo de uma imensa depressão, cujas paredes, com altura para lá de cem metros, estreitam funebremente o rio. Desde as margens cercadas de negros blocos de basalto eleva-se o bosque, negro também. Adiante, às costas, sempre a eterna muralha lúgubre, em cujo fundo o rio afunilado se precipita em incessantes erupções de água lodosa. A paisagem é agressiva, contudo, sua beleza sombria e calma cobra uma majestade única.
O sol havia já caído, quando o homem, estendido no fundo da canoa, teve um violento calafrio. E, de repente, com assombro, pôs na vertical pesadamente a cabeça: sentia-se melhor. Somente a perna lhe doía, a sede apagava-se, e seu peito, livre já, abria-se em lenta inspiração.

O veneno começar a ir-se, não havia dúvida. Achava-se quase bem, e embora não tivesse forças para mover a mão, contava com a vinda do orvalho para repor-se todo. Calculou que antes de três horas estaria em Tacurú-Pucú.
O bem-estar progredia e, com ele, uma letargia cheia de recordações. Não sentia mais nada na perna nem no ventre. Viveria ainda seu compadre Gaona em Tacurú-Pucú? Por acaso veria também seu ex-patrão, mister Dougald, e o encarregado de obras?

Chegaria repentinamente? O céu, a poente, abria-se agora num resplendor de sangue, e o rio se havia avermelhado também. Da costa paraguaia, já em trevas, a montanha deixava cair sobre o rio sua frescura crepuscular, em penetrantes eflúvios de flores de laranjeiras e mel silvestre. Um casal de araras cruzou o céu muito alto e em silêncio até o Paraguai.

Lá em baixo, sobre o rio de ouro, a canoa derivava velozmente, girando de tempos em tempos sobre si mesma, ante a erupção de um remoinho. O homem que ia nela se sentia cada vez melhor, e pensava no tempo justo em que havia passado sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez, não tanto. Dois anos e nove meses? Talvez. Oito meses e meio? Isso sim, certamente.

De repente, sentiu que estava gelado até o peito. Que seria? E a respiração...

Ao madeireiro de mister Dougald, Lorenzo Cubilla, havia conhecido em Puerto. Esperança em Sexta-feira Santa...Sexta-feira? Sim, ou quinta-feira...

O homem estendeu lentamente os dedos da mão.

— Uma quinta-feira...

E parou de respirar.

Horácio Quiroga

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(29 de Novembro de 1924, morre o compositor italiano Giacomo Puccini)

PUCCINI
«Madamme Butterfly»

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

CARTOON versus ESTROFE IRREGULAR

O Homem do Saco

HenriCartoon

«O HOMEM DO SACO»

Meritíssimo Doutor Juiz,
 De instrução criminal:
Não há que esmorecer...
Mantenha-se imparcial
Como a Justiça ordena ser!
Se preciso, mande prender
Os corruptos desta Nação,
No governo ou oposição
As leis são para cumprir…
Que ninguém se fique a rir
Das vítimas de corrupção!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DAGDA - «Druids in the Glen»

OUTROS CONTOS

«O Navio das Sombras», por Erico Veríssimo.

«O Navio das Sombras»
Conto de Erico Veríssimo

342- «O NAVIO DA SOMBRAS»

É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente  muito frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai  viajar. Mas é estranho... Tudo parece diferente do que ele sempre  imaginara. O grande transatlântico se desenha sem contornos certos contra o  céu de fuligem. Não se vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se,  entretanto, na treva, a presença rígida e gelada dos guindastes.

Os minutos passam. Ivo olha.  Sim, agora vê com mais clareza a silhueta  do grande barco. A grande Viagem! O seu sonho vai se realizar. Ficarão para  trás todas as suas angústias. É uma libertação. Devia estar alegre, sacudir  os braços, correr, gritar. Mas uma opressão estranha o paralisa. Que é isto?  Onde estão os outros passageiros? Onde se meteu a tripulação? É inquietante este silêncio noturno. E pavorosa esta sombra glacial que envolve tudo. Ivo  quer lançar ao ar uma palavra. Pronuncia bem alto seu próprio nome. O som  morre sem eco. O silêncio persiste. Então ele começa a sentir um mal-estar  que nem a si mesmo consegue explicar.

Divisa aos poucos, vultos imóveis na amurada do paquete. Parecem guardas  petrificados dum barco fantasma. Por que não se movem? Por que não falam? A esta hora a orquestra de bordo devia estar tocando uma marcha festiva.  Carregadores gritando. Passageiros, empregados de hotel, agentes da  companhia de navegação, guardas — muita gente devia andar pelo cais num formigamento sonoro.  No entanto reina o mais espesso silêncio... Ivo dá dois passos e é tomado duma esquisita sensação de leveza. Caminha sem o menor esforço. E como se não encontrasse nenhuma resistência no ar, como se suas pernas fossem de algodão.

Mete a mão no bolso. Sim, ali está a sua passagem. Fica mais tranqüilo e encorajado. Pode embarcar. Deve embarcar... Seria decepcionante perder o navio...

Dirige-se para a prancha. Hesita um instante antes de partir, porque a seus ouvidos soa, muito fraca, muito abafada, uma voz amiga.

— Ivo, Ivo querido, não me abandones! Inexplicável. De onde veio a voz? Volta a cabeça para os lados, procurando. Só encontra a escuridão fria e inimiga, O navio apita. Um som soturno, grave e prolongado, enche a grande noite. E uma queixa, quase um choro e, apesar disso, tem um certo tom de ameaça. Nesse apito rouco Ivo sente o pavor do oceano desconhecido na noite negra, a angústia dos navios perdidos a pedirem socorro, a aflição dos náufragos, o horror das profundezas do mar. O apito uivante e áspero parece feito dos gritos de todos os afogados, de todos os mares.

Ivo sente-se desfalecer de medo.

— Meu Ivo, por que foi? Por que foi?

Outra vez a voz. Ivo estremece. De onde vem aquela voz? Na amurada, os
vultos continuam imóveis. Nenhum deles podia ter falado assim com aquela
ternura longínqua. Porque eles devem ter uma voz cavernosa de pedra.

Parado ao pé da prancha, Ivo olha para o alto. Vê um homem na extremidade superior da escada. Está de pernas abertas, braços cruzados, olhando para baixo. Ivo não lhe pode distinguir £s feições. Mas é curioso, ele sente a força de dois olhos magnéticos que o fitam. E aquele olhar é um chamado, uma ordem.

Começa a subir. Lembra-se de um trecho de antologia da sua infância. André Chenier subindo as escadas do cadafalso. Sim, ele sente que vai ser guilhotinado. Lá em cima está o carrasco. Ou será apenas o capitão? Ivo sobe. Um, dois, três, quatro degraus ... O frio aumenta, Ivo começa a tiritar. Cinco, seis, sete. Sente uma fraqueza, uma tontura. Subiu apenas sete degraus, mas agora o cais está tão longe de seus pés, que ele tem a sensação de se encontrar no alto duma torre altíssima. O vento sopra gelado como a face dum morto. Mas por que lhe vêm com tanta insistência esses pensamentos macabros? Esta não é então a Viagem, a sua desejada aventura transoceânica? Deve então alegrar-se, cantar . . . Procura assobiar uma ária alegre. Mas o vento lhe impõe silêncio. Ivo sobe sempre . . . Quando senta o pé no navio, não vê mais o capitão. Volta os olhos e só enxerga a noite, a grande noite, a densa noite.

Por que não acendem as luzes deste navio? Senhores, as luzes! Outros vultos
passam. Mulheres, homens, crianças. É aflitivo. Ivo não lhes pode ver os rostos. E o silêncio apavorante!... 

Ivo se aproxima dum homem que se acha encostado à amurada.

— Por favor, meu amigo, pode me dizer se este vapor é o...

Cala-se. É assustador. Ele não sabe o nome do barco em que entrou. Como foi isso? Não se trata então duma viagem, da "sua" desejada viagem, por tanto tempo planejada e acariciada? Por que tudo agora está tão esfumado e confuso, como se sobre sua memória tivesse caído um véu? Ivo começa a suar. O suor lhe escorre pelo rosto em bagas frias.

- Pode me dizer onde fica o bar?

Sim, precisa tomar uma bebida qualquer. Deve ser o frio que o deixa assim tão sem memória, tão fraco e trêmulo.

— Cavalheiro, pode me dizer onde fica o sol?

O sol? Mas ele não queria perguntar onde ficava o sol. Jurava que ia
perguntar onde ficava o bar.

— Por favor, cavalheiro...

O vulto se move sem o menor ruído e some-se na sombra.

Ivo treme dos pés à cabeça. "Preciso encontrar o meu camarote" diz para si  mesmo — "preciso descobrir a minha bagagem" — pensa, numa crescente aflição. — "Deve existir alguém a bordo que possa me explicar. Talvez um doutor... Sim. Estou doente..."

E agora ele tem consciência duma dor, não aguda mas continuada e martelante, bem no lado esquerdo do peito. Leva a mão ao coração. Retira-a úmida. Será sangue ? Sim, deve ser...

Sai a correr apavorado. Um médico! Um médico! Estou ferido, vou morrer,
socorro! Mas suas pernas, de tão leves, agora se vergam. Ivo pára. Ajoelha-se e grita ainda: Um médico! Mas não consegue ouvir a própria voz. Ergue-se, agoniado. Homens, mulheres e poucas crianças continuam a passar. São ainda sombras sem vozes nem gestos.

Ivo procura orientar-se na escuridão. Parece-lhe agora enxergar contornos mais nítidos. Sim. Ali está uma porta. Um corredor. Se ele entrar no corredor talvez ache o seu camarote. Tem agora vagamente a lembrança dum número. 27... 27... Recorda-se de tê-lo visto impresso em algarismos negros sobre um quadro branco. 27... Onde?

De repente tem a impressão de que na memória se lhe abre uma clareira por onde ele enxerga o passado. Mas é apenas um relâmpago. De novo cai a névoa. Já não lhe dói mais o peito. Tudo deve ter sido ilusão ... ele não está ferido. As sombras passam. A bruma que vem do mar invade o navio. Onde estará o capitão? O frio e o silêncio persistem. O barco misterioso torna a soltar um gemido rouco e prolongado. Mas - é incrível, incompreensível, endoidecedor — nem o apito consegue quebrar o silêncio.

Ivo caminha sem destino. Não ouve o ruído dos próprios passos. Não tropeça
em nada. Aproxima-se da amurada e olha o mar. Só vê a escuridão velada duma bruma de cor doentia.

Um homem se aproxima dele. Ivo olha-lhe o rosto.. Já se lhe distinguem alguns traços. Decerto o hábito da escuridão. Céus, mas que rosto pálido! Parece a cara dum cadáver. A pele está ressequida e tem um tom esverdeado. Os olhos, parados e sem brilho. Os dentes arreganhados...

Agora aparecem outras faces. Uma criança sorrindo um sorriso horrendo. Uma
mulher com os olhos furados escorrendo sangue. Um velho com a boca queimada de ácido. Ivo solta um grito... Mas o silêncio continua. Onde estarei? — pensa ele. — Onde estarei? Faz um esforço dolorido para se lembrar.

Quem sou eu? Como foi que vim parar aqui? Onde estão os meus amigos, as pessoas que eu via todos os dias?

O frio aumenta. Ivo sente-se desfalecer. Tem a impressão de estar boiando
nas ondas dum mar gelado, como um náufrago; como um iceberg...

Camarote 27! — diz Ivo, - 27... 27... — Seus lábios se movem, mas nenhum som perturba o silêncio do grande barco e da enorme noite.

De repente uma onda morna lhe invade o corpo. Pela proa do navio começa a
nascer uma luz, pálida a princípio, mas a pouco e pouco se fazendo mais viva e dourada. Os olhos de Ivo se agrandam. Aquela luminosidade vai ser a explicação de tudo, a volta da memória... Sim, ele vai descer pela prancha e ganhar o cais. O cais também é negro e silencioso. Mas não há nada como a terra firme. Ele não quer viajar neste vapor tenebroso cujos passageiros são fantasmas. O mar desconhecido é um pavor na noite. Oh Deus! - pensa Ivo - como foi que eu cheguei a desejar esta viagem!? Que louco! Que louco! A luz cresce. O calor aumenta. A voz amiga se ouve mais forte: "Ivo, meu querido, fica comigo!" Sim, ele quer ficar. E preciso fugir do capitão do barco noturno. Ivo dá dois passos para a luz.

Ajoelhada ao pé da cama a moça aperta e beija a mão pálida do rapaz.

— Ivo, não quero que morras, não quero. Por que foi que fizeste isso? Por que foi?

Com a seringa de injeção numa das mãos, o médico contempla o rosto pálido do suicida. Pobre diabo! Perdeu tanto sangue... O corpo está quase frio.

A um canto do quarto, a dona da casa, torcendo o avental, olha muito assustada para a cama. "Por causa do que me devia, ele não precisava fazer isso. Eu podia espe­rar. Não tinha importância. Deus me perdoe. Se eu soubes­se, não tinha vindo hoje trazer a conta. Logo hoje,  Nossa Senhora!"

Ao pé da janela, o porteiro da casa conversa com um agente de polícia.

— De onde era ele?

— Do interior.

— Tinha família?

O porteiro encolhe os ombros.

— Era um moço muito calmo, muito delicado. An­dava sem emprego. Eu dizia para ele que tivesse paciência. Mas qual! Não agüentou... Há gente nervosa.

Falam já de Ivo como quem fala dum morto. O médico aproxima-se do grupo.

— Fiz uma tentativa desesperada. Injetei-lhe adrena­lina no coração. — Sacode a cabeça. — Não tenho muita esperança. Enfim... acontecem milagres...

Ao ouvir a palavra milagre a velha começa a rezar. 

De repente a moça se ergue, como que impelida por uma mola.

— Doutor! Ele está se mexendo... venha! Venha! Os três homens se aproximam da cama. O rosto de Ivo se move, seus olhos se entreabrem. Há um breve instante de aflitiva esperança. Ivo como que se baloiça, indeciso, por sobre as tênues fronteiras que separam a vida da morte.Mas parece haver do outro lado um chamado mais forte. O corpo se imobiliza.

O doutor inclina-se e ausculta-lhe o coração. Olha para a moça e diz, baixinho:

— Sinto muito. Mas não há mais nada a fazer. A dona da casa desata a chorar. Com o rosto contraído numa expressão mais de estupefação que dedor, a rapariga olha do médico para o morto, do morto para a folhinha da parede, onde o número 27 em letras negras se destaca sobre o quadrado branco. Iam contratar casamento, hoje, hoje...

O transatlântico vai partir. O transatlântico apita. É um gemido rouco, 
longo, doloroso, desesperado, irremediável. Debruçado à amurada, Ivo olha o 
vácuo. Agora é uma sombra resignada entre as outras sombras. O vento do 
grande mar desconhecido varre o barco dos suicidas. E to­dos eles ali vão em
silêncio, enquanto na ponte o fantástico Capitão olha com seus olhos vazios 
a noite insondável.

Erico Veríssimo

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E  a música especial de hoje é...
(27 de Novembro de 2014, a UNESCO declara «Cante Alentejano»
Património Imaterial da Humanidade)

OS CEIFEIROS DE PIAS
«Meu Alentejo Querido»

CARTOON versus QUADRAS

Pausa da Sesta

HenriCartoon

«PAUSA DA SESTA»

O PÊÉSSE é contra a bandalheira
Desse super- juiz sem instrução…
Culpa da malandragem financeira
Que tem governado esta Nação!

Tipos que actuam e nada fazem…
São esses malandros a investigar
Um pobre ex-ministro exemplar,
Vítima da sua própria sacanagem!

A nossa justiça em estado crítico…
Prender assim o «pobre» homem?
Isso é infâmia, um crime político!...
Afinal, quem foi que deu a ordem??

Como vocês sabem sou um jurista
Especialista em casos de demência…
Se eu acredito na sua inocência??…
Uma infâmia essa pergunta fascista!!

Bem, agora vão ter que desculpar
Mas está na hora de bater a soneca,
Continuamos quando eu acordar…
Digam lá… não sou levado da breca?

POETA 

OUTROS CONTOS

«O Herói do Papel», por Ludmila Ulitzkaia.

«O Herói do Papel»
Conto de Ludmila Ulitzkaia

341- «O HERÓI DO PAPEL»

Assim que o sol derreteu os grãos de neve escuros, e lavou a água suja e todo o lixo doméstico depositado durante o inverno – trapos, ossos, vidros partidos –, começaram a sentir-se no ar um sem número de odores, sobrepondo-se a todos eles o cheiro doce da terra no início da primavera. Foi então que Genia saiu para o pátio.

O seu nome era tão ridículo que ele, desde que aprendera a escrever, o sentia como uma humilhação. Para mais, Genia tinha, de nascença, um problema nas pernas que o fazia saltar de uma forma esquisita quando andava. A acrescentar a tudo isso, o nariz, continuamente entupido, obrigava-o a respirar pela boca, de forma que os lábios estavam sempre secos, o que o fazia lambê-los constantemente. Para completar, não tinha pai. É certo que metade das crianças não tinha pai mas, ao contrário das outras, Genia não podia dizer que o pai havia morrido na guerra: ele nunca tinha tido um pai. Tudo isto o tornava muito infeliz.

Saiu, portanto, para o pátio, ainda meio convalescente das suas maleitas de inverno e de primavera, com um gorro de lã enfiado na cabeça, por cima de um lenço, e um longo cachecol verde enrolado à volta do pescoço. O sol estava incrivelmente quente. As meninas tinham descido as meias, enrolando-as à volta das pernas como salsichas. A senhora da casa número sete, com a ajuda da neta, arrastara uma cadeira para debaixo da janela, e ali se encontrava sentada, com a cara virada ao sol. O ar, a terra, tudo estava cheio de vida e emanava força, principalmente as árvores despidas, de onde, a qualquer momento, pequenas folhas rebentariam alegremente.

Genia estava parado no meio do pátio, escutando, impressionado, os magníficos sons à sua volta. Um gato gordo atravessava o pátio na diagonal, colocando, hesitante, as patas na terra molhada. A primeira bola de lama caiu exatamente entre o rapaz e o gato, que curvou as costas e deu um salto para trás. Genia estremeceu. Chapiscos de lama bateram-lhe com força na cara. A segunda bola acertou-lhe nas costas, e ele nem esperou pela terceira: desatou a correr aos saltos em direção à porta de casa. Um dito trocista perseguiu-o como uma lança sonora: Genia Manco, limpa o ranho!

Voltou-se. Kolka atirava as bolas de lama, as meninas riam-se e por detrás deles, encontrava-se aquele a quem todos obedeciam, inimigo de quem não pertencesse ao seu grupo: o astucioso e destemido Shenka. Genia correu para a porta de casa. A avó vinha naquele momento a descer as escadas, uma avó minúscula, com um chapéu castanho na cabeça. Ia passear no jardim. Uma pele de raposa já gasta, com olhos de âmbar luzidios, repousava-lhe sobre os ombros.

Naquela noite, quando Genia ressonava por detrás do biombo verde, a mãe e a avó ficaram bastante tempo sentadas à mesa.

— Porquê? Porque é que andam sempre a fazer-lhe mal? — perguntou a avó num sussurro.

— Acho que devíamos convidá-los para o aniversário dele — respondeu a mãe.

— Estás maluca! — disse a avó assustada. — Aquilo não são crianças, são bandidos!

— Não vejo outra saída — retorquiu a mãe. — Temos de fazer um bolo, alguma coisa para comer e preparar-lhe uma festa de anos a sério.

— São uns bárbaros e uns bandidos. Vão levar-nos tudo o que temos em casa — teimava a avó.

— Ora diz lá, o que é que tens que possam roubar-te? — perguntou a mãe de Genia. — Os teus sapatos velhos, talvez?

— Ora, os sapatos! — a avó soltou um suspiro pesado. — O rapaz faz-me pena.

Passaram-se duas semanas. Chegou uma primavera suave e amena. A lama secara. O pátio ficou coberto de erva e, embora os moradores se esforçassem por sujá‑la novamente, ela continuava limpa e verde. As crianças brincavam de manhã à noite aos “polícias e ladrões”. As cercas estavam pintalgadas de setas de giz e carvão, o sinal dos ladrões à solta. Há já duas semanas que Genia ia à escola. A mãe e a avó trocavam olhares entre si. A avó, supersticiosa, cuspia por cima do ombro – pelo sim e pelo não. O intervalo entre duas doenças geralmente não durava mais de duas semanas. De manhã, a avó levava o neto à escola. Depois das aulas, esperava por ele no átrio, enrolava-lhe o cachecol verde, pegava-lhe pela mão e levava-o para casa.

Na véspera do dia de anos, a mãe disse a Genia que nesse ano iam fazer uma festa a sério.

— Convida quem tu quiseres da tua sala e do pátio — sugeriu.

— Não quero ninguém. Por favor, mãe, não! — pediu Genia.

— Tem de ser — respondeu a mãe laconicamente, e o estremecer das sobrancelhas disse a Genia que nada a demoveria.

Ao anoitecer, a mãe desceu ao pátio e convidou as crianças para o dia seguinte. Falou ao grupo inteiro, sem diferenciar ninguém; só a Shenka é que se dirigiu em separado:

— E tu também, Shenka.

Ele olhou-a com uns olhos tão frios e adultos, que ela ficou embaraçada.

— E porque não? Eu vou — respondeu, impassível.

E a mãe foi começar a preparar a massa do bolo.

Genia olhava tristemente em volta do quarto. O que mais o preocupava era o piano preto e brilhante. De certeza que mais ninguém tinha em casa uma coisa daquelas. O armário dos livros e as partituras na prateleira ainda se desculpavam… Mas Beethoven, aquela horrível máscara preta de Beethoven! De certeza que alguém iria perguntar maldosamente: “Aquele é o teu avô? Ou o teu pai?”

Genia pediu à avó que guardasse a máscara. A avó ficou admirada.

— Mas o que é que te incomoda nela agora? Olha que a tua mãe recebeu-a de presente, da professora!

E a avó contou, pela infinitésima vez, como a mãe era uma pianista de talento e como, se não tivesse sido a guerra, teria acabado o conservatório…

Sobre a mesa posta havia, pouco antes das quatro, uma terrina com salada de batata, pão torrado com arenque, e pirogas com recheio de arroz. Genia estava sentado à janela, de costas voltadas para a mesa e tentava não pensar que dali a nada os seus barulhentos, alegres e irreconciliáveis inimigos entrariam por ali dentro… Parecia completamente mergulhado na sua ocupação favorita: fazer um barco de folha de jornal.

Genia era um grande mestre na arte do papel. Passara na cama centenas de dias da sua vida. Bronquite de outono, anginas de inverno e constipações de primavera, tudo aguentara com paciência, dobrando pontas e alisando dobras de folhas de papel, tendo junto de si um livro cinzento azulado com uma girafa na capa. Intitulava-se “Horas divertidas” e tinha sido escrito por um sábio, um mágico, o melhor homem do mundo – um tal M. Gershenson. Este era um grande professor, mas Genia era também um grande aluno. Incrivelmente dotado para aquele passatempo de papel, já tinha feito coisas que nem Gershenson ousara imaginar! Genia rodava nas mãos o barquinho incompleto, esperando, com pavor, a chegada dos convidados.

Chegaram em grupo às quatro em ponto. As irmãs loirinhas, as convidadas mais novas, entregaram-lhe um grande ramo de margaridas. Os outros vieram sem prenda. Ordeiramente, todos se sentaram à mesa. A mãe serviu gasosa caseira com cerejas, e disse:

— Vamos brindar ao Genia, que faz anos hoje.

Cada um pegou no seu copo e brindaram. A mãe puxou o banco giratório, sentou-se ao piano e tocou “A marcha turca”. As irmãs olhavam fascinadas para as mãos a deslizar pelas teclas. A mais nova estava com uma cara assustada, como se fosse desatar a chorar a qualquer momento. Shenka, com um ar indiferente, comia salada de batata e uma piroga, e a avó rodeava cada convidado de cuidados, como costumava fazer com Genia. A mãe tocava agora canções de Schubert. Que cena incrível! Doze crianças mal vestidas, mas limpas e bem penteadas, comiam em completo silêncio, enquanto uma mulher magra tirava sons fugidios das teclas do piano. O aniversariante estava sentado, com as mãos transpiradas, a olhar fixamente para o prato. A música entretanto chegou ao fim, voou pela janela, e só alguns tons graves ficaram a pairar sob o teto, antes de seguirem os outros.

— Genia — disse de repente a avó, com voz doce —, não queres tocar também alguma coisa?

A mãe lançou à avó um olhar alarmado. O coração de Genia quase parava: eles detestavam-no pelo nome ridículo, pelo andar saltitante, pelo cachecol comprido e pela avó que ia passear com ele. E agora tinha de tocar piano à frente deles!

A mãe viu que ele empalidecera, adivinhou a razão e respondeu:

— Noutro dia. O Genia toca noutro dia.

A corajosa Valka perguntou, incrédula e quase admirada:

— Ele sabe tocar?

A mãe trouxe o bolo. Serviu-se chá. Numa taça redonda havia bombons, rebuçados de fruta e caramelos. Kolia comia à boca cheia sem vergonha nenhuma, e metera ainda alguns ao bolso. As irmãs chupavam rebuçados ácidos e pensavam em quais iriam pegar a seguir. Valka alisava papel de prata em cima do joelho bicudo. Shenka olhava em volta da sala com à-vontade. Os olhos deslizavam de um lado para o outro. Por fim, apontou para a máscara e perguntou:

— Tia Mussia! Quem é aquele? Pushkin?

A mãe sorriu e respondeu amavelmente:

— Aquele é Beethoven. Um compositor alemão. Era surdo mas, mesmo assim, compôs música magnífica.

— Um alemão? — perguntou Shenka alerta.

A mãe apressou-se a ilibar Beethoven de qualquer suspeita.

— Já morreu há muito tempo. Viveu há mais de cem anos, muito antes do fascismo.

A avó começara já a contar que a tia Mussia recebera a máscara de presente da professora, mas a mãe olhou-a com um olhar severo e ela calou-se.

— Querem que vos toque alguma coisa de Beethoven? — perguntou a mãe.

— Sim, por favor — concordou Shenka, e a mãe puxou novamente o banco, voltou-o  para o piano  e tocou a peça  preferida de Genia, “A Marmota”, que, por uma razão qualquer, lhe causava tristeza.

Estavam todos sentados muito quietos, sem o mínimo sinal de impaciência, embora os rebuçados e os doces já tivessem acabado há muito. A tensão de Genia afrouxara e, pela primeira vez, sentia até uma espécie de orgulho: a sua mãe estava a tocar Beethoven e ninguém se ria, todos a escutavam e olhavam para as mãos fortes correndo sobre as teclas.

A mãe parou de tocar.

— Pronto, chega de música. Vamos jogar alguma coisa. A que é que gostavam de jogar?

— Talvez às cartas — disse Kolia, sem pensar duas vezes.

— Vamos antes fazer um jogo de prendas — propôs a mãe.

Ninguém sabia o que era. Shenka estava à janela e revirava nas mãos o barquinho inacabado. A mãe explicou como funcionava um jogo de prendas, mas ninguém tinha nada para dar. Lília, uma menina com uma trança complicada, tinha sempre um pente no bolso, mas não queria dá-lo – e se desaparecesse? Shenka poisou o barquinho em cima da mesa e disse:

— Esta é a minha prenda.

Genia pegou no barquinho, e muito facilmente o terminou.

— Genia, faz também prendas para as meninas — pediu a mãe, colocando um jornal e duas folhas de papel mais rijo em cima da mesa.

Genia pegou numa folha, pensou um instante, dobrou o papel ao meio…

As cabeças rapadas dos rapazes e as cabeças com tranças apertadas das meninas curvaram-se sobre a mesa. Um barco, uma barcaça, um barco à vela, um copo, uma barrica de sal, um cesto de pão, uma camisa…

Mal Genia acabava uma peça, os outros arrancavam-lha imediatamente da mão.

— Para mim também, faz-me também alguma coisa!

— Mas tu já tens! Agora é a minha vez!

— Faz-me um copo, Genia, por favor!

— Um boneco, Genia, faz-me um bonequinho!

O jogo estava esquecido. Genia dobrava, alisava, voltava a dobrar, virava cantos. Uma pessoa, uma camisa, um cão… Esticavam as mãos na sua direção, ele oferecia aquelas maravilhas de papel e todos sorriam, todos lhe agradeciam. Puxou uma vez do lenço e assoou-se – e ninguém notou, nem mesmo ele.

Só em sonhos experimentara uma sensação daquelas. Estava feliz! Não sentia medo, rejeição, hostilidade. Não era nem um pouco inferior a eles. Mais ainda: admiravam-lhe um talento trivial, a que nem mesmo ele dava importância alguma. Pela primeira vez observou-lhes os rostos: não estavam zangados. Não estavam absolutamente nada zangados.

Shenka virava e revirava uma folha de jornal no parapeito da janela. Tinha desdobrado o barquinho e tentava dobrá-lo outra vez. Quando viu que não era capaz, chegou junto de Genia, pôs-lhe a mão no ombro e perguntou-lhe, tratando-o pela primeira vez pelo nome:

— Ora olha, Genia, e agora, como é que se faz?

A mãe lavava a loiça, sorria e as lágrimas caíam-lhe na água com sabão.

Feliz, o rapazinho distribuía brinquedos de papel.

Ludmila Ulitzkaia