terça-feira, 7 de outubro de 2014

OUTROS CONTOS

«Amada», por Toni Morrison.

No dia 7 de Outubro de 1993, a norte-americana Toni Morrison, autora de «Amada», recebe o Prémio Nobel da Literatura. Pela primeira vez o prémio é atribuído a uma escritora negra. 
Poet'anarquista
«Amada»
Mãe negra, filho e pássaro mensageiro
Aguarela de Lívio de Morais

289- «AMADA»

[Trecho]

O 124 era rancoroso. Cheio de um veneno de bebé. As mulheres da casa sabiam e sabiam também as crianças. Durante anos cada um lidou com o rancor de seu próprio jeito, mas em 1873 Sethe e sua filha Denver foram suas únicas vítimas. A avó, Baby Suggs, tinha morrido, e os filhos, Howard e Buglar, haviam fugido ainda com treze anos de idade, assim que o simples olhar no espelho o estilhaçava (foi esse o sinal para Buglar); assim que as marcas de duas mãozinhas apareceram no bolo (esse foi o de Howard). Nenhum dos dois rapazes esperou para ver mais; outro caldeirão de ervilhas fumegando amontoadas pelo chão; biscoitos esfarelados e espalhados numa linha junto ao batente da porta. Não esperaram nem por um dos períodos de alívio: as semanas, meses mesmo, em que nada acontecia. Não. Cada um fugiu de uma vez - no momento em que a casa cometeu o que para ele era o único insulto a não ser suportado nem visto uma segunda vez. No prazo de dois meses, no pico do inverno, deixaram a avó, Baby Suggs; Sethe, a mãe; e a irmãzinha pequena, Denver, completamente sozinhas na casa cinza e branca da rua Bluestone. A casa não tinha número então, porque Cincinnati não chegava até ali. Na verdade, Ohio se chamava de estado há apenas setenta anos quando primeiro um irmão depois o outro enterrou o chapéu na cabeça, agarrou os sapatos e se esgueirou para longe do rancor vivo que a casa sentia por eles. 

Baby Suggs nem levantou a cabeça. De seu leito de doente, ouviu os dois irem embora, mas não era essa a razão de sua imobilidade. Era um mistério para ela seus netos terem levado tanto tempo para entender que nem todas as casas eram como a da rua Bluestone. Suspensa entre a sordidez da vida e a baixeza dos mortos, ela não conseguia se interessar por deixar a vida, nem por viver a vida, muito menos pelo pavor dos dois meninos fujões. Seu passado tinha sido igual a seu presente - intolerável - e, como ela sabia que a morte não era nada além de esquecimento, usou a pouca energia que lhe restava para ponderar sobre cor.

"Me traga um pouco de lilás, se tiver. Rosa, se não tiver."

E Sethe a satisfazia, com qualquer coisa, desde um pedaço de tecido até sua própria língua. O inverno em Ohio era especialmente duro para quem tinha apetite por cor. O céu só provia drama e contar com um horizonte de Cincinnati como alegria principal da vida era mesmo temerário. Então, Sethe e a menina Denver faziam por ela o que podiam, e o que a casa permitia. Juntas travavam uma inútil batalha contra o comportamento daquele lugar; contra penicos virados, tapas no traseiro e rajadas de ar viciado. Porque elas entendiam a fonte da infâmia tão bem quanto conheciam a fonte de luz.

Baby Suggs morreu logo depois que os irmãos foram embora, sem nenhum interesse na partida deles ou dela e, logo depois, Sethe e Denver resolveram encerrar a perseguição invocando o fantasma que tanto as atormentava. Talvez uma conversa, pensaram, uma troca de opiniões ou alguma outra coisa pudesse ajudar. Então deram-se as mãos e disseram:

“Venha. Venha. Podia pelo menos aparecer”.

O guarda-louças deu um passo adiante, mas nada mais se manifestou.

"Vovô Baby não deve estar deixando", disse Denver.

Tinha dez anos e ainda estava furiosa com Baby Suggs por ter morrido.

Sethe abriu os olhos. “Duvido”, disse ela.

"Então por que ela não aparece?"

"Está esquecendo como ela é pequena", disse a mãe. "Não tinha nem dois anos quando morreu. Muito pequena para entender. Muito pequena até para falar."

"Vai ver que ela não quer entender", disse Denver.

"Pode ser. Mas se ela viesse, eu pelo menos podia contar tudo para ela." Sethe largou a mão da filha e juntas empurraram de volta o guarda-louças até encostar na parede. Lá fora, um cocheiro chicoteou o cavalo para galopar como as pessoas dali achavam necessário fazer ao passar na frente do 124.

"Para um bebê ela tem bastante força", disse Denver.

"Não mais do que a força do meu amor por ela", Sethe respondeu, e lá estava de novo. O frescor de boas-vindas de lápides não lapidadas; aquela que, na ponta dos pés, ela escolhera para encostar, os joelhos tão abertos como qualquer túmulo. Rosa como uma unha e polvilhado de pontos cintilantes. Dez minutos, ele disse. Você tem dez minutos e eu faço grátis.

Dez minutos para cinco letras. Com mais dez ela podia ter conseguido “Bem” também? Não tinha pensado em perguntar a ele e ainda a incomodava aquilo ter sido possível - que em troca de vinte minutos, meia hora digamos, ela podia ter conseguido a coisa toda, todas as palavras que tinha ouvido o pregador dizer no enterro (e tudo o que havia para dizer, com certeza) entalhado na lápide: Bem-Amada. Mas o que ela havia conseguido, que escolhera, era a única palavra que importava. Ela achou que podia bastar, copular entre as lápides com o entalhador, o filho dele, menino, olhando, tão velho o ódio em seu rosto; bem novo o apetite nesse rosto. Aquilo com certeza devia bastar. Bastar para responder a mais um pregador, a mais um abolicionista e a uma cidade cheia de aversão.

Contando com a quietude de sua própria alma, ela esquecera a outra: a alma de sua filha bebê. Quem haveria de dizer que um velho bebezinho pudesse abrigar tanta raiva? Copular entre as lápides sob os olhos do filho do entalhador não bastou. Não só ela teve de viver seus anos numa casa paralisada pela fúria do bebê por lhe terem cortado a garganta, como aqueles dez minutos que passou esmagada contra a pedra cor de amanhecer salpicada de lascas de estrelas, os joelhos tão abertos como o túmulo, foram os mais longos de sua vida, mais vivos e mais pulsantes que o sangue do bebê que encharcaram seus dedos como óleo.

"Podemos mudar", ela sugeriu uma vez à sogra.

"Para quê?", Baby Suggs perguntou. "Não tem uma casa no país que não esteja recheada até o teto com a tristeza de algum negro morto. Sorte nossa que esse fantasma é um bebê. O espírito do meu marido podia baixar aqui? Ou do seu? Nem me fale. Sorte a sua. Ainda tem três sobrando. Três puxando suas saias e só uma infernizando do outro lado. Agradeça, por que não agradece? Eu tive oito. Um por um foram para longe de mim. Quatro levados, quatro perseguidos, e todos, acho, assombrando a casa de alguém para o mal." Baby Suggs esfregou as sobrancelhas. "Minha primeira. Dela só lembro é do quanto gostava da ponta queimada do pão. Dá para acreditar? Oito filhos e é só disso que eu lembro."

"É só isso que você deixa voltar na sua lembrança", Sethe disse, mas a ela havia sobrado só uma, uma viva, quer dizer, os meninos expulsos pela morta, e sua lembrança de Buglar estava se apagando depressa. Howard tinha pelo menos um formato de cabeça que ninguém conseguia esquecer. Quanto ao resto, ela batalhava para lembrar o mínimo possível.

Infelizmente seu cérebro era tortuoso. Podia estar indo depressa pelo campo, praticamente correndo, para chegar rápido à bomba e lavar a seiva de camomila das pernas. Nada mais na cabeça. A imagem dos homens vindo para mamar nela era tão sem vida quanto os nervos de suas costas onde a pele era ondulada como uma tábua de lavar roupa. Também não havia mais nem o menor cheiro da tinta ou da goma de cereja e da casca de carvalho de que a tinta era feita. Nada. Só a brisa refrescando seu rosto enquanto corria para a água. E, então, enxaguando a camomila com a água da bomba e trapos, a cabeça pensando apenas em conseguir remover a seiva toda - em seu descuido de tomar um atalho pelo campo só para economizar meio quilômetro, e só perceber que as hastes estavam altas até a coceira já estar chegando nos joelhos. Depois, alguma coisa. O poço de água, a visão de suas meias e sapatos revirados no caminho onde os tinha jogado; ou Aqui Rapaz pulando na poça junto a seus pés, e, de repente, lá estava Doce Lar, se desdobrando, desdobrando, desdobrando diante de seus olhos e, embora não houvesse uma única folha naquela fazenda que não lhe desse vontade de gritar, a fazenda se desdobrava na sua frente em desavergonhada beleza. Nunca parecera tão terrível como agora e a fazia pensar se o inferno seria um lugar bonito também. Fogo e enxofre, sim, mas escondidos em bosques rendilhados. Rapazes pendurados nos sicômoros mais lindos do mundo. Sentia vergonha de lembrar das maravilhosas árvores sussurrantes mais que dos rapazes. Por mais que tentasse o contrário, os sicômoros venciam as crianças todas as vezes e não conseguia perdoar sua memória por isso.

Quando toda a camomila desapareceu, voltou para a frente da casa, pegou os sapatos e as meias no caminho. Como para castigá-la ainda mais por sua memória terrível, sentado na varanda a menos de quinze metros estava Paul D, o último homem da Doce Lar. E embora ela jamais pudesse confundir sua cara com outro, perguntou: “É você?”.

"O que sobrou." Ele se levantou e sorriu. "Como vai, menina, apesar de descalça?"

Quando ela riu, foi um riso solto e jovem: “Sujei a perna lá adiante. Camomila”.

Ele fez uma careta, como se tivesse provado uma colher de alguma coisa amarga. “Não quero nem ouvir falar disso. Sempre detestei esse negócio.”

Sethe embolou as meias e enfiou no bolso. “Vamos entrar.”

"Está bom na varanda, Sethe. É fresco aqui." Ele voltou a se sentar e olhou o campo do outro lado da estrada, sabendo que a ansiedade que sentia apareceria no olhar.

"Dezoito anos", disse ela, de mansinho.

"Dezoito", ele repetiu. "E juro que andei durante esses anos todos. Se importa de eu imitar você?" Indicou com a cabeça os pés dela e começou a desamarrar os sapatos.

"Quer pôr na água? Vou buscar uma bacia de água para você." Ela chegou mais perto dele para entrar na casa.

"Não, não, não. Amolecer o pé, não. Muita estrada ainda pela frente."

"Não pode ir embora já, Paul D. Tem de ficar um pouco."

"Bom, um pouco só para ver a Baby Suggs, então. Onde é que ela está?"

"Morreu."

"Ah, não. Quando?"

"Faz oito anos já. Quase nove."

"Ela sofreu? Não foi duro morrer para ela, espero."

Sethe balançou a cabeça. “Macio feito creme. Viver é que estava difícil. Pena você sentir falta dela. Foi isso que veio fazer aqui?”

"Uma parte do que eu vim fazer aqui. A outra parte é você. Mas se é para falar a verdade, eu não vou mais para lugar nenhum agora. Em nenhum lugar que me deixem sentar."

"Está com a cara boa."

"Confusão do diabo. Ele me deixa com a cara boa contanto que eu me sinta mal." Olhou para ela e a palavra "mal" assumiu outro sentido.

Sethe sorriu. Eles eram desse jeito - sempre tinham sido. Todos os homens da Doce Lar, antes e depois de Halle, a tratavam como um meigo flerte fraterno, tão sutil que era preciso olhar bem para ver.

A não ser por um monte de cabelo a mais e alguma expectativa nos olhos, ele estava com a mesma cara que tinha em Kentucky. Pele de caroço de pêssego; costas retas. Para um homem de cara dura, era incrível a prontidão com que sorria, se zangava, ou demonstrava pena. Como se só bastasse chamar sua atenção para, na mesma hora, ele demonstrar o sentimento que estava sentindo. Com menos que uma piscada, a cara dele parecia mudar: por baixo ficava a prontidão.

"Dele eu não preciso perguntar, preciso? Você me contava se tivesse alguma coisa para contar, não contava?" Sethe baixou os olhos para os pés e mais uma vez viu os sicômoros.

"Contava. Claro que contava. Mas não sei mais nada agora do que eu já sabia antes." A não ser pelo coalho, ele pensou, e isso você não precisa saber. "Você deve achar que ele ainda está vivo."

"Não. Eu acho que ele morreu. Não ter a certeza é que faz ele continuar vivo."

"O que a Baby Suggs achava?"

"A mesma coisa, mas para ela os filhos estavam todos mortos. Dizia que sentia quando cada um ia embora no mesmo dia e hora."

"Quando ela disse que o Halle foi embora?"

"Mil oitocentos e cinquenta e cinco. No dia que meu bebê nasceu."

"Você teve aquele bebê, então? Nunca pensei que você ia ter." Ele riu. "Fugir grávida."

"Precisei. Não dava para esperar." Ela baixou a cabeça e pensou, como ele, como era improvável ter conseguido. E, se não fosse aquela menina procurando veludo, nunca teria tido.

"E sozinha ainda por cima." Ele ficou orgulhoso e incomodado por ela. Orgulhoso de ela ter feito aquilo; incomodado de ela não ter precisado nem de Halle nem dele no acontecido.

"Quase sozinha. Não sozinha de tudo. Uma moça branca me ajudou."

"Então ela ajudou foi ela mesma, benza Deus."

"Você podia ficar para dormir, Paul D."

"Você não parece muito certa do convite."

Por cima do ombro dele, Sethe olhou a porta fechada. 

"Ah, é sincero, sim. Só espero que não repare na casa. Vamos entrar. Converse com Denver enquanto eu faço alguma coisa para você comer."

Paul D amarrou os sapatos um no outro, pendurou no ombro e foi atrás dela porta adentro direto para uma poça de luz vermelha e ondulante que o imobilizou onde estava.

"Está com visita?", ele sussurrou, franzindo a testa.

"De vez em quando", disse Sethe.

"Meu Deus." Ele recuou da porta de volta à varanda. "Que mal é esse que tem aí dentro?"

"Não é mal, é só tristeza. Venha. Entre de uma vez."

Ele então olhou para ela, com atenção. Mais atenção do que quando ela chegara perto da casa com as pernas molhadas e brilhantes, segurando os sapatos e as meias numa mão, as saias na outra. A garota do Halle - de olhos de aço e tutano igual. Ele nunca tinha visto o cabelo dela em Kentucky. E, embora seu rosto estivesse dezoito anos mais velho que da última vez que a vira, estava mais suave agora.

Por causa do cabelo. Um rosto imóvel demais para ser confortável; as íris da mesma cor da pele, coisa que, naquele rosto imóvel, costumava fazê-lo pensar numa máscara com olhos misericordiosamente perfurados. A mulher do Halle. Grávida todo ano, inclusive no ano em que, sentada ao lado do fogo, contou a ele que ia fugir. Os três filhos ela já havia despachado num carroção de outros em uma caravana de negros que ia atravessar o rio. Seriam deixados com a mãe de Halle perto de Cincinnati. Mesmo naquele barraco minúsculo, tão perto do fogo que dava para sentir o cheiro do calor do vestido dela, seus olhos não captavam nem uma faísca de luz. Eram como dois poços dentro dos quais ele tinha dificuldade para olhar. Mesmo perfurados tinham de ser cobertos, tapados, marcados com alguma placa para alertar as pessoas do vazio que continham. Então ele preferiu ficar olhando o fogo enquanto ela contava, porque o marido dela não estava lá para contar.

Mr. Garner tinha morrido e a esposa dele estava com um caroço no pescoço do tamanho de uma batata-doce, não conseguia mais falar. Ela se inclinou para perto do fogo o máximo que a barriga de grávida permitia e contou para ele, Paul D, o último dos homens da Doce Lar.

[…] 

Toni Morrison

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