terça-feira, 30 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Os Canhotos», por Gunter Grass.

«Os Canhotos»
Conto de Gunter Grass

284- «OS CANHOTOS»

Erich me observa. Também eu não tiro meus olhos dele. Nós dois temos armas nas mãos e está decidido que faremos uso dessas armas, que nos feriremos um ao outro com elas. Nossas armas estão carregadas. Seguramos diante de nós pistolas testadas em longos exercícios, e, logo depois dos exercícios, azeitadas com cuidado, esquentando devagar o metal frio. À distância um ferro desses parece inofensivo. Por acaso não se pode segurar assim um porta-canetas, uma chave pesada e arrancar um grito e tanto de uma tia assustada, estendendo a mão calçada em uma luva preta? Jamais poderei permitir que amadureça em mim o pensamento de que a arma de Erich seja cega, inofensiva ou de brinquedo. Também sei muito bem que Erich não põe a seriedade do meu instrumento em dúvida por um segundo que seja. Além disso nós dois, há cerca de meia hora, desmontamos e limpamos as pistolas, para depois voltar a montá-las, carregá-las e engatilhá-las. Nós não somos sonhadores. Elegemos a chácara de Erich para o lugar de nossa acção inevitável. Uma vez que a casinha de apenas um andar fica a mais de uma hora da próxima estação de trem, ou seja, bem isolada, devemos pressupor que todo e qualquer ouvido indesejado, no verdadeiro sentido da palavra, haverá de estar bem longe do tiro. Nós esvaziamos a sala e tiramos os quadros, na maior parte cenas de caça e naturezas-mortas, da parede. É que os tiros não devem atingir as cadeiras, as cómodas brilhantemente calorosas e os quadros ricamente emoldurados. Também não queremos acertar o espelho ou ferir uma porcelana. Apenas nós queremos ser o alvo.

Nós dois somos canhotos. Conhecemo-nos do clube. Os senhores sabem muito bem que os canhotos dessa cidade, assim como todos os que são vítimas de um defeito de qualquer natureza, fundaram um clube. Nós nos encontramos com regularidade e procuramos educar nosso manejo diferente e lamentavelmente tão desajeitado. Durante algum tempo um destro prestativo nos deu aula. Lamentavelmente ele agora não aparece mais. Os senhores da direcção criticaram seus métodos de ensino e acharam que os membros do clube teriam de reaprender sozinhos. E assim nós passamos a inventar, juntos e à vontade, jogos destinados apenas a nós dois com provas de destreza como: sacar, enfiar, desengatilhar, abrir e abotoar com a direita. Em nossos estatutos está escrito: não descansaremos enquanto a esquerda não for igual à direita.

Por mais bela e vigorosa que seja essa frase, ela não deixa de ser um absurdo dos mais completos. Assim nós jamais chegaremos lá. E a ala mais extrema de nossa aliança, já exige há tempo que essa sentença seja riscada e em vez dela seja escrito: nós queremos ter orgulho de nossa mão canhota e não nos envergonhar da habilidade com a qual nascemos.

Também esse lema por certo não procede, e apenas o seu apto, como também uma certa generosidade do sentimento, fez com que escolhêssemos essas palavras. Erich e eu, que somos relacionados à ala mais extrema de nossa aliança, sabemos muito bem como são profundas as raízes que nossa vergonha fincou ao chão. A casa dos pais, a escola, mais tarde os tempos do serviço militar não contribuíram nada no sentido de nos ensinar uma postura capaz de suportar essa peculiaridade insignificante – insignificante se comparada a outras anormalidades bem mais disseminadas. Tudo começou quando estendíamos nossa mãozinha na infância. Essas tias, tios, amigas pelo lado materno, colegas pelo lado paterno, essa foto de família terrível, que escurece o horizonte de uma infância e é impossível de ser ignorada. E a mão tinha de ser estendida a todos:

– Não, não a mãozinha malcriada, dê a bem-comportada. Você tem de dar a mãozinha certa, a mãozinha boa, a única mãozinha verdadeira, esperta e jeitosa, a mãozinha direita!

Eu tinha dezasseis anos e pela primeira vez agarrei uma menina:

–  Oh, você é canhoto! – ela disse, desiludida, e tirou minha mão de dentro de sua blusa.

Recordações dessas marcam, e se apesar disso ainda quisermos escrever esse lema – Erich e eu o redigimos – e nosso livro, é porque com isso estamos apenas buscando mencionar um ideal que com certeza jamais poderá ser alcançado.

Então percebi que Erich havia comprimido os lábios e apertado os olhos. Faço o mesmo. Os músculos de nossas faces brincam, a pele da testa se distende, o dorso de nossos narizes se afina. Erich agora parece um actor de cinema, cujas feições me são familiares de várias cenas audaciosas. Devo supro que também sou marcado por uma semelhança fatal com um desses dúbios heróis da tela? Nós por certo parecemos irados, e eu estou contente por não haver ninguém nos observando. Será que ele, a testemunha indesejada, não concluiria que dois jovens homens, de natureza demasiado romântica, estavam prontos a duelar? Ambos amam a mesma mulher, ou um deles falou mal do outro. Uma contenda familiar que se estende por gerações, uma questão de honra, um jogo sanguinário por tudo ou nada. Só inimigos se olham assim. Vejam esses lábios estreitos e descoloridos, esses dorsos nasais irreconciliáveis. Como eles mastigam o ódio, esses sedentos de morte.

Nós somos amigos. Ainda que nossas profissões sejam tão diferentes – Erich é chefe de sector em uma loja de departamentos, eu escolhi a profissão bem paga do mecânico de precisão –, nós temos tantos interesses em comum quantos são necessários para conceder durabilidade a uma amizade. Erich faz parte do clube há mais tempo do que eu. Me lembro muito bem do dia em que, vestido de maneira tímida e demasiado festiva, entrei no restaurante frequentado pelos unilaterais, e Erich veio ao meu encontro, indicando o guarda-roupa ao inseguro para depois dizer com sua voz:

– O senhor por certo quer vir até nós. Deixe o acanhamento de lado; estamos aqui a fim de nos ajudarmos.

Acabo de dizer “unilaterais”. É assim que nós nos chamamos oficialmente. Mas também essa nomeação, assim como grande parte dos estatutos, me parece malograda. O nome não expressa com nitidez suficiente o que é que nos une e, ao final de contas, também deveria nos fortalecer. Com certeza seria melhor se fôssemos chamados, curto e grosso, de esquerdos, ou, mais sonoramente, de irmãos da esquerda. Os senhores haverão de adivinhar por que tivemos de abrir mão de mandar que nos registassem sob esse título. Nada seria menos pertinente, e ainda por cima mais injurioso, do que nos compararmos com aquelas pessoas, por certo dignas de pena, às quais a natureza privou da única possibilidade humana de fazer justiça com as próprias mãos. Muito pelo contrário, nós somos uma sociedade variegada, reunida ao acaso, e posso dizer que nossas senhoras não ficam devendo nada em termos de beleza, charme e bons modos a muita ambidestra, sim, caso a gente comparasse com cuidado, por certo resultaria um quadro moral que faria algum pároco preocupado com a salvação da alma da comunidade gritar de seu púlpito:

– Ah, fossem todos vós canhotos!

Esse nome fatal. Até mesmo nosso primeiro presidente, um alto funcionário da municipalidade, do setor de cadastros, de inclinações e lamentavelmente também de orientações um tanto patriarcais, de quando em vez tem de explicar que nós não consideramos bom o fato de não ter a palavra canhoto no nome e que não somos unilaterais nem pensamos, sentimos ou agimos de maneira unilateral.

É claro que considerações de ordem política também tiveram um papel importante quando nós rejeitamos as melhores propostas e escolhemos o nome pelo qual no fundo jamais deveríamos ser chamados. Depois que os membros do parlamento, partindo do centro, passaram a tender para um ou para outro lado e as cadeiras das casas foram postas de maneira que tão-só a ordem das cadeiras denuncia a situação política de nossa pátria, tornou-se hábito atribuir uma radicalidade das mais perigosas a um escrito, a um discurso no qual a palavrinha esquerda aparecesse mais de uma vez. Pois bem, no que diz respeito a isso podemos ficar tranquilos. Se há um clube em nossa cidade que sobrevive sem ambições políticas, apenas da ajuda e da sociabilidade mútua, então esse clube é o nosso. E para enfim cortar pela raiz, de uma vez por todas, a sombra de qualquer suspeita de desvio erótico, seja dito que encontrei minha noiva entre as mocinhas de nosso grupo jovem. Assim que uma casa ficar livre para nós dois, queremos nos casar. Caso algum dia desapareça de minha lembrança o último resquício daquele primeiro encontro com o sexo feminino, será pura e exclusivamente por causa da bondade de Monika.

Nosso amor não teve de enfrentar apenas os problemas corriqueiros de outras relações, descritos à farta em vários livros, também nosso sofrimento manual teve de ser machucado e praticamente esclarecido a fim de que pudéssemos gozar nossa pequena ventura. Depois de termos tentado, em nossa primeira e aliás compreensível confusão, dar prazer um ao outro com a direita, e termos sido obrigados a perceber quão insensível era esse nosso lado mouco, nós apenas nos acariciamos com jeito, quer dizer, assim como Deus nos criou. Não vou fazer revelações demasiadas e também espero não ser indiscreto se insinuo aqui que é a mão amada de Monika que sempre de novo me concede a força para continuar firme e manter a promessa. Logo depois da primeira vez em que fomos ao cinema juntos, tive de assegurar a ela que pouparia sua mocidade intacta até que nos enfiássemos os anéis – aqui lamentavelmente cedendo e dando forças à canhestrice de uma aptidão inata – nos dedos anelares da mão direita. Isso que em países católicos do sul o sinal dourado do casamento é usado na esquerda, coisa que por certo confirma o fato de naquelas zonas ensolaradas ser antes o coração do que o juízo implacável quem governa. Talvez a fim de se revoltar de modo feminino e provar como as mulheres são capazes de argumentar de forma clara e evidente quando seus interesses estão em perigo, as damas mais jovens de nosso clube, em zelosos trabalhos nocturnos, bordaram uma inscrição em nossa bandeira verde: “O coração bate do lado esquerdo”.

Monika e eu já discutimos esse momento da troca de alianças tantas vezes e mesmo assim sempre acabamos voltando ao mesmo resultado: não podemos nos dar ao luxo de ser tomados como noivos em um mundo ignorante e muitas vezes até maldoso, se há tempo já somos casados e dividimos tudo, tanto o grande quanto o pequeno, um com o outro. Muitas vezes Monika chora por causa dessa história das alianças. Por mais que nos sintamos alegres com esses nossos dias, com certeza haverá um leve fulgor de tristeza descansando sobre todos os presentes, sobre as mesas fartamente postas e festejos comedidos.

Eis que então Erich volta a mostrar seu rosto bom e normal. Também eu cedo, mas mesmo assim continuo sentindo por algum tempo esse espasmo na musculatura dos maxilares. Além disso, as têmporas continuam palpitantes. Não, por certo essas caretas não ficam bem em nós. Nossos olhares se encontram mais calmos e também por isso mais corajosos; nós fazemos mira. Cada um tem a mão correta do outro em mente. Eu tenho certeza que não haverei de falhar; e também posso confiar em Erich. Treinamos por muito tempo, quase a cada minuto livre em uma cascalheira junto à praia, a fim de não fracassar hoje, dia em que tantas coisas devem ser decididas.

Os senhores haverão de gritar que isso beira o sadismo, não, que isso é auto-mutilação. Acreditem em mim, conhecemos todos esses argumentos. Não é a primeira vez que estamos nesta sala vazia. Nos vimos armados assim quatro vezes e quatro vezes deixamos, assustados com nossa intenção, as pistolas apontarem ao chão. Só hoje alcançamos a clareza definitiva. Os últimos acontecimentos de ordem pessoal e também na vida do clube nos dão razão: temos de fazê-lo. Depois de muitas dúvidas – nós questionamos os pareceres do clube, os desejos da ala extrema –, enfim decidimos ir às armas. Por mais lamentável que isso possa parecer, nós já não suportamos mais. Nossa consciência exige que nos distanciemos dos costumes dos camaradas do clube. É que o sectarismo acabou se espalhando, e as fileiras dos mais razoáveis estão tomadas por lunáticos, até mesmo por fanáticos. Alguns dão vivas à direita, outros fazem juras à esquerda. O que eu jamais quis acreditar está acontecendo; lemas políticos são gritados de uma mesa à outra, o culto repulsivo de pregar pregos com a mão esquerda significando um juramento é tão praticado que algumas das reuniões da presidência parecem orgias nas quais o mais importante é entrar em êxtase através de batidas violentas e possessas. Ainda que ninguém ouse divulgá-lo em voz alta e que a princípio os arruinados pelo vício até agora tenham sido expulsos sem mais cerimónias, é impossível de negar: aquele amor falho e para mim totalmente incompreensível entre membros do mesmo sexo também encontrou adeptos entre nós. E, para dizer o pior: também minha relação com Monika foi abalada. Ela fica junto de sua amiga, uma criatura delicada e instável, durante um tempo que me parece demasiado. Demasiadas são suas acusações de que fui indulgente demais e mostrei pouca coragem naquela história das alianças, para que eu possa acreditar que ainda exista entre nós a mesma confiança e que ela permanece sendo a mesma Monika que eu continuo, cada vez mais raramente, tendo nos braços.

Agora Erich e eu procuramos respirar no mesmo ritmo. Quanto mais coincidirmos também nisso, tanto mais certos estaremos de que nossa ação está sendo conduzida pelo bom sentimento. Não devem acreditar que sejam as palavras bíblicas que nos ordenam a arrancar o mal. É, muito antes, o desejo quente e perpétuo de clarificar as coisas, a necessidade de saber com clareza o que é de mim, se esse destino é imutável ou se nós temos à mão a possibilidade de modificar nossa vida, apontando-lhe uma direção normal. Chega de proibições idiotas, bandagens e truques do tipo. Direitos, nós queremos tomar posse de nossa liberdade de escolha, não estar mais separados do geral por nada e ser donos de uma mão afortunada.

Nossa respiração agora coincide. Sem darmos sinal um ao outro, atiramos ao mesmo tempo. Erich acertou e também eu não o desiludi. Cada um de nós, conforme o previsto, rompeu o tendão importante de tal modo que as pistolas, seguradas com uma força que já era insuficiente, caíram ao chão tornando qualquer tiro subsequente desnecessário. Nós rimos e começamos nossa grande experiência, desajeitados, porque contamos apenas com a mão direita, ajeitando as ataduras de emergência.

Gunter Grass

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