quarta-feira, 17 de setembro de 2014

«CARTA», POR GUERRA JUNQUEIRO

«Carta»
Poeta Português Guerra Junqueiro

CARTA 
(a um amigo que me pediu versos)

Como hei-de ser um Petrarca, 
Cantar como um rouxinol, 
Se o meu termómetro marca 
Quarenta e dois graus ao sol! 

Da lira bárbara e tosca 
Nem saem trovas d'Alfama. 
Enxota o Pégaso a mosca, 
E eu durmo a sesta na cama. 

A hipocondria maciça 
Conduzo-a, não há remédio, 
Na jumenta da preguiça 
Pelas charnecas do tédio. 

Eu trago a inspiração oca, 
Ando abatido, ando mono; 
Meus versos abrem a boca, 
Como os porteiros com sono. 

Não tenho a rima imprevista, 
Os guizos d'oiro ou de opala, 
Que à asa da estrofe o artista 
Sublime prende ao largá-la. 

P'ra lapidar à vontade 
Um belo verso radiante, 
Falta-me a tenacidade, 
Que é como o pó do diamante. 

A musa foi-se-me embora; 
Para onde foi nem me lembro; 
Só a torno a ver agora 
Lá para os fins de Setembro. 

Anda talvez nas florestas 
Fazendo orgias pagãs, 
Entre os aromas das giestas 
E os braços dos Egipãs. 

Deixá-la andar lá dois meses 
Colhendo imagens e flores, 
Para espanto dos burgueses 
E ruína dos editores. 

Enfim, o calor achata-nos. 
Vamos aos bosques pacíficos 
Onde os guarda-sóis — os plátanos — 
Têm forros novos, magníficos! 

Guerra Junqueiro

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