terça-feira, 30 de setembro de 2014

CARTOON versus QUADRAS

O Adeus Sentido
HenriCartoon

«O ADEUS SENTIDO»

As diferenças são secundárias…
Depois da estrondosa derrota
Do meu PÊÉSSE nas primárias,
Resolvi-me a abdicar pró Bosta:

Demito-me de secretário-geral
Bem como do Conselho d’ Estado,
Mas não renunciarei a Portugal…
Ó da Guarda, canto eu o fado! (?)

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
 (30 de Setembro de 1791, estreia-se em Viena «A Flauta Mágica», 
última ópera de Mozart, sob a direção do compositor)

MOZART
«A Flauta Mágica/ Abertura»

OUTROS CONTOS

«Os Canhotos», por Gunter Grass.

«Os Canhotos»
Conto de Gunter Grass

284- «OS CANHOTOS»

Erich me observa. Também eu não tiro meus olhos dele. Nós dois temos armas nas mãos e está decidido que faremos uso dessas armas, que nos feriremos um ao outro com elas. Nossas armas estão carregadas. Seguramos diante de nós pistolas testadas em longos exercícios, e, logo depois dos exercícios, azeitadas com cuidado, esquentando devagar o metal frio. À distância um ferro desses parece inofensivo. Por acaso não se pode segurar assim um porta-canetas, uma chave pesada e arrancar um grito e tanto de uma tia assustada, estendendo a mão calçada em uma luva preta? Jamais poderei permitir que amadureça em mim o pensamento de que a arma de Erich seja cega, inofensiva ou de brinquedo. Também sei muito bem que Erich não põe a seriedade do meu instrumento em dúvida por um segundo que seja. Além disso nós dois, há cerca de meia hora, desmontamos e limpamos as pistolas, para depois voltar a montá-las, carregá-las e engatilhá-las. Nós não somos sonhadores. Elegemos a chácara de Erich para o lugar de nossa acção inevitável. Uma vez que a casinha de apenas um andar fica a mais de uma hora da próxima estação de trem, ou seja, bem isolada, devemos pressupor que todo e qualquer ouvido indesejado, no verdadeiro sentido da palavra, haverá de estar bem longe do tiro. Nós esvaziamos a sala e tiramos os quadros, na maior parte cenas de caça e naturezas-mortas, da parede. É que os tiros não devem atingir as cadeiras, as cómodas brilhantemente calorosas e os quadros ricamente emoldurados. Também não queremos acertar o espelho ou ferir uma porcelana. Apenas nós queremos ser o alvo.

Nós dois somos canhotos. Conhecemo-nos do clube. Os senhores sabem muito bem que os canhotos dessa cidade, assim como todos os que são vítimas de um defeito de qualquer natureza, fundaram um clube. Nós nos encontramos com regularidade e procuramos educar nosso manejo diferente e lamentavelmente tão desajeitado. Durante algum tempo um destro prestativo nos deu aula. Lamentavelmente ele agora não aparece mais. Os senhores da direcção criticaram seus métodos de ensino e acharam que os membros do clube teriam de reaprender sozinhos. E assim nós passamos a inventar, juntos e à vontade, jogos destinados apenas a nós dois com provas de destreza como: sacar, enfiar, desengatilhar, abrir e abotoar com a direita. Em nossos estatutos está escrito: não descansaremos enquanto a esquerda não for igual à direita.

Por mais bela e vigorosa que seja essa frase, ela não deixa de ser um absurdo dos mais completos. Assim nós jamais chegaremos lá. E a ala mais extrema de nossa aliança, já exige há tempo que essa sentença seja riscada e em vez dela seja escrito: nós queremos ter orgulho de nossa mão canhota e não nos envergonhar da habilidade com a qual nascemos.

Também esse lema por certo não procede, e apenas o seu apto, como também uma certa generosidade do sentimento, fez com que escolhêssemos essas palavras. Erich e eu, que somos relacionados à ala mais extrema de nossa aliança, sabemos muito bem como são profundas as raízes que nossa vergonha fincou ao chão. A casa dos pais, a escola, mais tarde os tempos do serviço militar não contribuíram nada no sentido de nos ensinar uma postura capaz de suportar essa peculiaridade insignificante – insignificante se comparada a outras anormalidades bem mais disseminadas. Tudo começou quando estendíamos nossa mãozinha na infância. Essas tias, tios, amigas pelo lado materno, colegas pelo lado paterno, essa foto de família terrível, que escurece o horizonte de uma infância e é impossível de ser ignorada. E a mão tinha de ser estendida a todos:

– Não, não a mãozinha malcriada, dê a bem-comportada. Você tem de dar a mãozinha certa, a mãozinha boa, a única mãozinha verdadeira, esperta e jeitosa, a mãozinha direita!

Eu tinha dezasseis anos e pela primeira vez agarrei uma menina:

–  Oh, você é canhoto! – ela disse, desiludida, e tirou minha mão de dentro de sua blusa.

Recordações dessas marcam, e se apesar disso ainda quisermos escrever esse lema – Erich e eu o redigimos – e nosso livro, é porque com isso estamos apenas buscando mencionar um ideal que com certeza jamais poderá ser alcançado.

Então percebi que Erich havia comprimido os lábios e apertado os olhos. Faço o mesmo. Os músculos de nossas faces brincam, a pele da testa se distende, o dorso de nossos narizes se afina. Erich agora parece um actor de cinema, cujas feições me são familiares de várias cenas audaciosas. Devo supro que também sou marcado por uma semelhança fatal com um desses dúbios heróis da tela? Nós por certo parecemos irados, e eu estou contente por não haver ninguém nos observando. Será que ele, a testemunha indesejada, não concluiria que dois jovens homens, de natureza demasiado romântica, estavam prontos a duelar? Ambos amam a mesma mulher, ou um deles falou mal do outro. Uma contenda familiar que se estende por gerações, uma questão de honra, um jogo sanguinário por tudo ou nada. Só inimigos se olham assim. Vejam esses lábios estreitos e descoloridos, esses dorsos nasais irreconciliáveis. Como eles mastigam o ódio, esses sedentos de morte.

Nós somos amigos. Ainda que nossas profissões sejam tão diferentes – Erich é chefe de sector em uma loja de departamentos, eu escolhi a profissão bem paga do mecânico de precisão –, nós temos tantos interesses em comum quantos são necessários para conceder durabilidade a uma amizade. Erich faz parte do clube há mais tempo do que eu. Me lembro muito bem do dia em que, vestido de maneira tímida e demasiado festiva, entrei no restaurante frequentado pelos unilaterais, e Erich veio ao meu encontro, indicando o guarda-roupa ao inseguro para depois dizer com sua voz:

– O senhor por certo quer vir até nós. Deixe o acanhamento de lado; estamos aqui a fim de nos ajudarmos.

Acabo de dizer “unilaterais”. É assim que nós nos chamamos oficialmente. Mas também essa nomeação, assim como grande parte dos estatutos, me parece malograda. O nome não expressa com nitidez suficiente o que é que nos une e, ao final de contas, também deveria nos fortalecer. Com certeza seria melhor se fôssemos chamados, curto e grosso, de esquerdos, ou, mais sonoramente, de irmãos da esquerda. Os senhores haverão de adivinhar por que tivemos de abrir mão de mandar que nos registassem sob esse título. Nada seria menos pertinente, e ainda por cima mais injurioso, do que nos compararmos com aquelas pessoas, por certo dignas de pena, às quais a natureza privou da única possibilidade humana de fazer justiça com as próprias mãos. Muito pelo contrário, nós somos uma sociedade variegada, reunida ao acaso, e posso dizer que nossas senhoras não ficam devendo nada em termos de beleza, charme e bons modos a muita ambidestra, sim, caso a gente comparasse com cuidado, por certo resultaria um quadro moral que faria algum pároco preocupado com a salvação da alma da comunidade gritar de seu púlpito:

– Ah, fossem todos vós canhotos!

Esse nome fatal. Até mesmo nosso primeiro presidente, um alto funcionário da municipalidade, do setor de cadastros, de inclinações e lamentavelmente também de orientações um tanto patriarcais, de quando em vez tem de explicar que nós não consideramos bom o fato de não ter a palavra canhoto no nome e que não somos unilaterais nem pensamos, sentimos ou agimos de maneira unilateral.

É claro que considerações de ordem política também tiveram um papel importante quando nós rejeitamos as melhores propostas e escolhemos o nome pelo qual no fundo jamais deveríamos ser chamados. Depois que os membros do parlamento, partindo do centro, passaram a tender para um ou para outro lado e as cadeiras das casas foram postas de maneira que tão-só a ordem das cadeiras denuncia a situação política de nossa pátria, tornou-se hábito atribuir uma radicalidade das mais perigosas a um escrito, a um discurso no qual a palavrinha esquerda aparecesse mais de uma vez. Pois bem, no que diz respeito a isso podemos ficar tranquilos. Se há um clube em nossa cidade que sobrevive sem ambições políticas, apenas da ajuda e da sociabilidade mútua, então esse clube é o nosso. E para enfim cortar pela raiz, de uma vez por todas, a sombra de qualquer suspeita de desvio erótico, seja dito que encontrei minha noiva entre as mocinhas de nosso grupo jovem. Assim que uma casa ficar livre para nós dois, queremos nos casar. Caso algum dia desapareça de minha lembrança o último resquício daquele primeiro encontro com o sexo feminino, será pura e exclusivamente por causa da bondade de Monika.

Nosso amor não teve de enfrentar apenas os problemas corriqueiros de outras relações, descritos à farta em vários livros, também nosso sofrimento manual teve de ser machucado e praticamente esclarecido a fim de que pudéssemos gozar nossa pequena ventura. Depois de termos tentado, em nossa primeira e aliás compreensível confusão, dar prazer um ao outro com a direita, e termos sido obrigados a perceber quão insensível era esse nosso lado mouco, nós apenas nos acariciamos com jeito, quer dizer, assim como Deus nos criou. Não vou fazer revelações demasiadas e também espero não ser indiscreto se insinuo aqui que é a mão amada de Monika que sempre de novo me concede a força para continuar firme e manter a promessa. Logo depois da primeira vez em que fomos ao cinema juntos, tive de assegurar a ela que pouparia sua mocidade intacta até que nos enfiássemos os anéis – aqui lamentavelmente cedendo e dando forças à canhestrice de uma aptidão inata – nos dedos anelares da mão direita. Isso que em países católicos do sul o sinal dourado do casamento é usado na esquerda, coisa que por certo confirma o fato de naquelas zonas ensolaradas ser antes o coração do que o juízo implacável quem governa. Talvez a fim de se revoltar de modo feminino e provar como as mulheres são capazes de argumentar de forma clara e evidente quando seus interesses estão em perigo, as damas mais jovens de nosso clube, em zelosos trabalhos nocturnos, bordaram uma inscrição em nossa bandeira verde: “O coração bate do lado esquerdo”.

Monika e eu já discutimos esse momento da troca de alianças tantas vezes e mesmo assim sempre acabamos voltando ao mesmo resultado: não podemos nos dar ao luxo de ser tomados como noivos em um mundo ignorante e muitas vezes até maldoso, se há tempo já somos casados e dividimos tudo, tanto o grande quanto o pequeno, um com o outro. Muitas vezes Monika chora por causa dessa história das alianças. Por mais que nos sintamos alegres com esses nossos dias, com certeza haverá um leve fulgor de tristeza descansando sobre todos os presentes, sobre as mesas fartamente postas e festejos comedidos.

Eis que então Erich volta a mostrar seu rosto bom e normal. Também eu cedo, mas mesmo assim continuo sentindo por algum tempo esse espasmo na musculatura dos maxilares. Além disso, as têmporas continuam palpitantes. Não, por certo essas caretas não ficam bem em nós. Nossos olhares se encontram mais calmos e também por isso mais corajosos; nós fazemos mira. Cada um tem a mão correta do outro em mente. Eu tenho certeza que não haverei de falhar; e também posso confiar em Erich. Treinamos por muito tempo, quase a cada minuto livre em uma cascalheira junto à praia, a fim de não fracassar hoje, dia em que tantas coisas devem ser decididas.

Os senhores haverão de gritar que isso beira o sadismo, não, que isso é auto-mutilação. Acreditem em mim, conhecemos todos esses argumentos. Não é a primeira vez que estamos nesta sala vazia. Nos vimos armados assim quatro vezes e quatro vezes deixamos, assustados com nossa intenção, as pistolas apontarem ao chão. Só hoje alcançamos a clareza definitiva. Os últimos acontecimentos de ordem pessoal e também na vida do clube nos dão razão: temos de fazê-lo. Depois de muitas dúvidas – nós questionamos os pareceres do clube, os desejos da ala extrema –, enfim decidimos ir às armas. Por mais lamentável que isso possa parecer, nós já não suportamos mais. Nossa consciência exige que nos distanciemos dos costumes dos camaradas do clube. É que o sectarismo acabou se espalhando, e as fileiras dos mais razoáveis estão tomadas por lunáticos, até mesmo por fanáticos. Alguns dão vivas à direita, outros fazem juras à esquerda. O que eu jamais quis acreditar está acontecendo; lemas políticos são gritados de uma mesa à outra, o culto repulsivo de pregar pregos com a mão esquerda significando um juramento é tão praticado que algumas das reuniões da presidência parecem orgias nas quais o mais importante é entrar em êxtase através de batidas violentas e possessas. Ainda que ninguém ouse divulgá-lo em voz alta e que a princípio os arruinados pelo vício até agora tenham sido expulsos sem mais cerimónias, é impossível de negar: aquele amor falho e para mim totalmente incompreensível entre membros do mesmo sexo também encontrou adeptos entre nós. E, para dizer o pior: também minha relação com Monika foi abalada. Ela fica junto de sua amiga, uma criatura delicada e instável, durante um tempo que me parece demasiado. Demasiadas são suas acusações de que fui indulgente demais e mostrei pouca coragem naquela história das alianças, para que eu possa acreditar que ainda exista entre nós a mesma confiança e que ela permanece sendo a mesma Monika que eu continuo, cada vez mais raramente, tendo nos braços.

Agora Erich e eu procuramos respirar no mesmo ritmo. Quanto mais coincidirmos também nisso, tanto mais certos estaremos de que nossa ação está sendo conduzida pelo bom sentimento. Não devem acreditar que sejam as palavras bíblicas que nos ordenam a arrancar o mal. É, muito antes, o desejo quente e perpétuo de clarificar as coisas, a necessidade de saber com clareza o que é de mim, se esse destino é imutável ou se nós temos à mão a possibilidade de modificar nossa vida, apontando-lhe uma direção normal. Chega de proibições idiotas, bandagens e truques do tipo. Direitos, nós queremos tomar posse de nossa liberdade de escolha, não estar mais separados do geral por nada e ser donos de uma mão afortunada.

Nossa respiração agora coincide. Sem darmos sinal um ao outro, atiramos ao mesmo tempo. Erich acertou e também eu não o desiludi. Cada um de nós, conforme o previsto, rompeu o tendão importante de tal modo que as pistolas, seguradas com uma força que já era insuficiente, caíram ao chão tornando qualquer tiro subsequente desnecessário. Nós rimos e começamos nossa grande experiência, desajeitados, porque contamos apenas com a mão direita, ajeitando as ataduras de emergência.

Gunter Grass

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

CARTOON versus QUADRA

Cilindrado

HenriCartoon

«CILINDRADO»

O'PS! Acabo de ser esmagado
Pelo Bosta... finalmente!...
Tudo o que tinha planeado,
Foi cilindrado Seguramente!!

POETA

MÚSICA DO MUNDO

E a música de hoje é...

Bill Whelan
«The Deserted Villiage»

OUTROS CONTOS

«A Carteira», por Machado de Assis.

«A Carteira»
Conto de Machado de Assis

283- «A CARTEIRA»

...De repente, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:

— Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.

— É verdade, concordou Honório envergonhado.

Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta coisa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma voragem.

— Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e familiar da casa.

— Agora vou, mentiu o Honório.

A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma coisa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.

D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingia-se tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.

Um dia, a mulher foi achá-lo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viu-lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou-lhe o que era.

— Nada, nada.

Compreende-se que era o medo do futuro e o horror da miséria. Mas as esperanças voltavam com facilidade. A ideia de que os dias melhores tinham de vir dava-lhe conforto para a luta. Estava com trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou emprestado, para pagar mal, e a más horas.

A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos mil-réis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse-lhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar-lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. Tinha-se lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua da Assembleia é que viu a carteira no chão, apanhou-a, meteu no bolso, e foi andando. Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes — enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achou-se daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma coisa e encostou-se à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntava-lhe se podia utilizar-se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irónica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida? Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciá-la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam-no a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizer-lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregar-lha; insinuação que lhe deu ânimo.

Tudo isso antes de abrir a carteira. Tirou-a do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu-a, e ficou trémulo. Tinha dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos mil-réis, algumas de cinquenta e vinte; calculou uns setecentos mil-réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar-se-ia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, 
tornou a guardá-la.

Mas daí a pouco tirou-a outra vez, e abriu-a, com vontade de contar o dinheiro. Contar para que? era dele? Afinal venceu-se e contou: eram setecentos e trinta mil-réis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos... Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava-o pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituí-lo. Restituí-lo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.

“Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro,” pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinou-a por fora, e pareceu-lhe efectivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dois cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.

A descoberta entristeceu-o. Não podia ficar com o dinheiro, sem praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroou-se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dois empurrões, mas ele resistiu.

“Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer.”

Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado, e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma coisa.

— Nada.

— Nada?

— Por quê?

— Mete a mão no bolso; não te falta nada?

— Falta-me a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso. Sabes se alguém a achou?

— Achei-a eu, disse Honório entregando-lha.

Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prémio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deu-lhe as explicações precisas.

— Mas conheceste-a?

— Não; achei os teus bilhetes de visita.

Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriu-a, foi a um dos bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu-o a D. Amélia, que, ansiosa e trémula, rasgou-o em trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.

Machado de Assis

domingo, 28 de setembro de 2014

CARTOON versus QUADRA

O Deus do Voto
HenriCartoon

«O DEUS DO VOTO»

- Em quem vais tu votar, boy?
- Ora, girl… no gajo do PÊÉSSE!
- Os dois são do PÊÉSSE... até dói!
- Um-do-li-tá… cresce e aparece!!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

MODENA CITY RAMBLERS
«Oltre la Guerra e la Paura»
Oltre la guerra e la paura by Modena City Ramblers on Grooveshark
Poet'anarquista

ALÉM DA GUERRA E DO MEDO

Meu irmão olha para o mundo
e não sabe o que pensar,
meu irmão olha para o mundo
em busca de um sinal,
grande? o ruído
e confusão,
profundo? o silêncio
da razão

Meu irmão está se escondendo
e não mais? de entender,
meu irmão está se escondendo
e não quer intervir,
dizer de
que o dia vai ser? duro,
falar de provas,
de Deus e do futuro

Ouça a voz de quem ainda resiste, por favor, não se deixe enganar!
Olhar para além destas paredes ... além da guerra e do medo!

Meu irmão vê tudo
e seu olho não distingue,
meu irmão vê tudo
mas a memória é confusa,
teorias grito, perseguindo moral,
propaganda ganha
sempre com as mesmas frases

Meu irmão deu-se
para ter uma opinião,
Meu irmão deu-se
em troca de um mestre
que escolhe em seu lugar
e que não pode? estar errado
por quê? agora não
que seja capaz de julgar

Ouça a voz de quem ainda resiste, por favor, não se deixe enganar!
Olhar para além destas paredes ... além da guerra e do medo!
Ouça a voz de quem ainda resiste, por favor, não se deixe enganar!
Olhar para além destas paredes ... além da guerra e do medo!

Olhar para além destas paredes ...
além da guerra e do medo ...

Modena City Ramblers

OUTROS CONTOS

«O Homem Trocado», por Luís Fernando Veríssimo.

«O Homem Trocado»
Conto de Luís Fernando Veríssimo

282- «O HOMEM TROCADO»

O homem acorda da anestesia e olha em volta. Ainda está na sala de
recuperação. Há uma enfermeira do seu lado. Ele pergunta se foi tudo bem.

- Tudo perfeito - diz a enfermeira, sorrindo.

- Eu estava com medo desta operação...

- Por quê? Não havia risco nenhum.

- Comigo, sempre há risco. Minha vida tem sido uma série de enganos...

E conta que os enganos começaram com seu nascimento. Houve uma troca
de bebês no berçário e ele foi criado até os dez anos por um casal de
orientais, que nunca entenderam o fato de terem um filho claro com olhos
redondos. Descoberto o erro, ele fora viver com seus verdadeiros pais. Ou
com sua verdadeira mãe, pois o pai abandonara a mulher depois que esta não
soubera explicar o nascimento de um bebê chinês.

- E o meu nome? Outro engano.

- Seu nome não é Lírio?

- Era para ser Lauro. Se enganaram no cartório e...

Os enganos se sucediam. Na escola, vivia recebendo castigo pelo que não
fazia. Fizera o vestibular com sucesso, mas não conseguira entrar na
universidade. O computador se enganara, seu nome não apareceu na lista.

- Há anos que a minha conta do telefone vem com cifras incríveis. No mês
passado tive que pagar mais de 3 mil reais.

- O senhor não faz chamadas interurbanas?

- Eu não tenho telefone!

Conhecera sua mulher por engano. Ela o confundira com outro.
Não foram felizes.

- Por quê?

- Ela me enganava.

Fora preso por engano. Várias vezes. Recebia intimações para pagar dívidas
que não fazia. Até tivera uma breve, louca alegria,
quando ouvira o médico dizer:

- O senhor está desenganado.

Mas também fora um engano do médico. Não era tão grave assim. 
Uma simples apendicite.

- Se você diz que a operação foi bem...

A enfermeira parou de sorrir.

- Apendicite? - perguntou, hesitante.

- É. A operação era para tirar o apêndice.

- Não era para trocar de sexo?

Luís Fernando Veríssimo

sábado, 27 de setembro de 2014

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

Especial músicas do mundo... 
(Inteiramente dedicado ao músico, cantor, compositor e poeta português, 
José Mário Branco)

PRÉMIO «TENCO» 
(Mais que merecido, só peca por tardio)
José Mário Branco

Aos 72 anos, o cantautor português José Mário Branco vai ser distinguido em Itália com o Prémio Tenco 2014, atribuído pelo Clube Tenco, que homenageia todos os anos o cantor Luigi Tenco, falecido em 1968.

«Esta distinção pretende destacar a carreira do cantautor português e a contribuição que a sua obra e activismo tiveram no desenvolvimento das artes e da sociedade», explica em comunicado a promotora de José Mário Branco.

O músico português irá receber o prémio no próximo dia 2 de Outubro, em San Remo, em Itália, e irá ainda fazer parte do espectáculo musical a realizar no Teatro Del Casino. Nessa actuação, José Mário Branco contará com a participação e colaboração da cantora grega Maria Farantouri, do grupo checo Plastic People Of Universe e do nativo-americano John Trudell.

No passado, outros artistas portugueses foram distinguidos com o mesmo galardão: em 1995, Sérgio Godinho, e em 2004, Dulce Pontes. Entre os nomes internacionais, encontramos Vinicius de Moraes, Jacques Brel, Leonard Cohen, Tom Waits ou Caetano Veloso.
Fonte: MSN

José Mário Branco
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades

JOSÉ MÁRIO BRANCO
«Abertura - (Gare de Austerlitz)»
Abertura (Gare D'austerlitz) by José Mário Branco on Grooveshark
Poet'anarquista

JOSÉ MÁRIO BRANCO
«Por Terras de França»
Por_Terras_de_Franca by jose_mario_branco on Grooveshark
Poet'anarquista

POR TERRAS DE FRANÇA

Vou andando por terras de França
pela viela da esperança
sempre de mudança
tirando o meu salário

Enquanto o fidalgo enche a pança
o Zé Povinho não descansa
Há sempre uma França
Brasil do operário

Não foi por vontade nem por gosto
que deixei a minha terra
Entre a uva e o mosto
fica sempre tudo neste pé

Vamos indo por terras de França
nossa miragem de abastança
sempre de mudança
roendo a nossa grade

Quando vai o gado prà matança
ao cabo da boa-esperança
Bolas prà bonança
e viva a tempestade

Não foi por vontade nem por gosto …

           Vamos indo por terras de França            
com a pobreza na lembrança
sempre de mudança
com olhos espantados

Canta o galo e a governança
a tesourinha e a finança
e os cães de faiança
ladrando a finados

Não foi por vontade nem por gosto …

Vamos indo por terras de França
trocando a sorte pela chança
sempre de mudança
suando o pé de meia

Com a alocação e a segurança
com sindicato e com vacança
Há sempre uma França
Numa folha de peia

Não foi por vontade nem por gosto …

José Mário Branco

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(27 de Setembro de 1756, nasce o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart)

MOZART - «Marcha Turca»

OUTROS CONTOS

«Ronda das Gotas», por Dyonelio Machado.

«Ronda das Gotas»
Conto de Dyonelio Machado

281- «RONDA DAS GOTAS»

A pequenita foi, pé ante pé, até a porta que abria para o corredor. Estendeu um olhar longo para o fundo da casa, para se certificar de que não era observada, e voltou, tranquila, para o seu lugar, na sala da frente.

Subiu de novo à janela.

Era num primeiro andar.

Chovia.

Alice divertia-se vendo a chuva cair.

Bem à altura dos seus olhos, uns pingos grossos, redondos, deslizavam, suspensos dos cabos eletrolíticos que margeavam a rua num e noutro lado.

Vinham uns atrás dos outros. Aproveitavam um declive do fio, doce e curvo como um seio, e precipitavam-se, velozes, como se brincassem “de pegar”.

Alguns, pesados, destacavam-se, como grandes pérolas hialinas, antes de atingir o seu fim – que era a junção do arame que, à altura da sua porta, distribuía a energia elétrica à casa.

Os mais valentes, porém, triunfavam daquela distância. Às vezes, mesmo, dois ou três, retardados pelo aclive que agora o fio apresentava e que era necessário vencer, fundiam-se num só, que brilhava um momento, enorme, majestoso, e ruía, depois, pesadamente.

Como se vê, era assaz animado o espetáculo.

Ordinariamente, nem bem acompanhava até o termo do seu percurso essa gota, já outras muitas, cinco ou seis – uma multidão – despontavam à sua esquerda, pelo outro lado da janela – cujo retângulo cinzento, naquele dia triste de chuva, limitava o seu mundo visual.

Alice batia festivamente as palmas, quando os seus pingos chegavam ao fim de sua jornada e ficavam ainda luzindo, antes de se diluírem, aprisionados na malha tosca que a extremidade do fio de ligação fazia, ao enroscar-se no cabo principal.

Alice interessava-se particularmente pela sorte das pequeninas gotas, quando estas se precipitavam no espaço. A princípio era um simples intumescimento claro da massa escura do condutor. Depois, com a chegada de outras, maiores, iam crescendo, definindo-se, até tomar o vulto das demais e seguir-lhes o mesmo caminho, como quem diz o mesmo destino, despencando-se, finalmente, em meio do trajeto ou no seu fim, mas sempre despencando-se.

Para as crianças, como em geral para os simples e sábios, tudo tem vida. Para as crianças, especialmente, tudo possui uma expressão humana.

Para Alice, pois, os pingos menores eram crianças, como ela, e os pingos maiores – adultos – os pais. Certamente eram pais extremosos aquelas gotas grossas que vinham tomar nos seus braços fortes as gotas pequeninas, como que abandonadas, coitaditas, no meio da estrada fria...

Ao passar pela sua frente, Alice vaticinava, secretamente, o futuro de cada gota: esta chegará... esta não chegará... Dir-se-ia uma pequenina bruxa, postada no caminho da vida, a profetizar para uma humanidade também pequenina, mas igualmente atingida da incerteza e inconstância de nosso destino...

A representação repetia-se. Alice desejá-la-ia mais variada. Já a enfarava, pois.

Tinha, porém, uma outra curiosidade, agora. Superior ao prazer que lhe dava a passagem ininterrupta das gotas: era descobrir-lhes a origem!

Onde nasceriam? Longe dali? Na outra janela? – E Alice curvava tristemente a pequenina fronte ao peso desse grande mistério, como o homem igualmente, ante o tenebroso problema da sua própria origem...

Uma esperança, porém, atravessou-lhe o craniozinho esbraseado! Fez-se-lhe uma luz! Talvez fosse na casa vizinha! Cada casa possuía certamente as suas gotas, que nasciam e morriam dentro do espaço que vai de uma à outra! Era lógico! – E Alice da mesma forma que os homens, corria sofregamente atrás dos enganos da lógica, na necessidade de engendrar a unidade que não existe no universo, mas que constitui a única condição da sua explicação humana...

O seu objetivo agora era temerário. O banquinho sobre que se achava, e que constituíra até aí o seu posto rudimentar de observação, seria totalmente ineficaz para a acompanhar na arrojada empresa. Afastou-se, então, como quem ia munir-se de um aparelho mais adiantado. Voltou, pouco depois, com uma cadeira, enorme, de braços.

Fez a substituição e subiu.

Estendeu o olhar, com metade do corpo para fora.

Ela julgara que iria surpreender as gotas na sua origem definida e palpável: uma mão potente, depositando-as, facilmente, sobre o fio, já feitas, com vida e aquela sua forma, original e caprichosa.

Decepção!... Sobre o cabo, nada de extraordinário. As pequenas gotas de água pareciam surgir por si, no meio dum mistério, ao mesmo tempo simples e profundo, assegurando-se, bem assim, pelo esforço próprio, o estado esferoidal que as distinguia...

Igualmente, não tinham lugar certo para nascer. O fio, molhado em toda a sua extensão, parecia constituir a grande matriz, indiferentes das gotas da chuva, que se desatavam na sua superfície, como pequenos botões de flores, desabrochando ao longo dum galho nu.

E Alice pensou então que, de todo o espetáculo, desde a origem do pingo d’água, até o seu fim, só o que havia de claro e de certo – era a sua mensagem através do retângulo cinzento da janela. Era o seu fugitivo instante de vida...

– Minha filha! Dantas! Acudam!

Alice procurava voltar-se. Só então é que viu o perigo em que se encontrava, prestes também a desabar no abismo da rua.

O homem correu. Deitou-lhe um braço enérgico e amparador. Retirou-a muito pálida da janela, onde ela, pela primeira vez, se debruçara sobre o mistério da vida e da morte...

– Minha querida filha!... Que susto tu deste na tua mãe...

Dyonelio Machado

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

CARTOON versus QUADRA

A Nova Cara da Oposição
HenriCartoon

«A NOVA CARA DA OPOSIÇÃO»

Esperava uma forte oposição
Dos deputados da Assembleia,
E a respectiva dor de cefaleia…
Mas tu, Fedelho? Juro que não!

POETA

CARTOON versus QUADRA

O Debate em Gestos

Poet'anarquista

«O DEBATE EM GESTOS»

- Bosta, bora fazer gestos obscenos,
Assim o debate fica mais animado…

- Bora , Inseguro… estou preparado...
Debate sério cada vez há menos!

POETA

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(26 de Setembro de 1937, morre a cantora de «blues» norte-americana Bessie Smith, 
num desastre de automóvel no Mississipi. 
Vários hospitais recusam-se recebê-la, por ser negra.)

BESSIE SMITH - «Shipwreck Blues»
Shipwreck Blues by Bessie Smith on Grooveshark
Poet'anarquista

NAUFRÁGIO BLUES

Capitão, mande seus homens a bordo
Claro que vejo só puxar para a outra costa

Estou triste em mente e eu estou tão preocupada no coração
Ah, o melhor dos amigos assim tem a parte

Explodir seu capitão do apito , assim seus homens saberão o que fazer
Explodir seu capitão do apito, assim seus homens saberão o que fazer
Quando uma mulher fica triste, não há palavras para o que ela não vai fazer

É nublado ao ar livre , como pode ser
Ah, está nublado, como pode ser
É o tempo que preciso meu bom homem comigo

Está chovendo e ele é tempestade no mar
Está chovendo, ele é tempestade no mar
Sinto como se alguém tem um naufrágio pobre de mim

Bessie Smith

OUTROS CONTOS

«Nocturno», conto poético por T. S. Eliot.

«Nocturno»
Romeu e Julieta/ Pintura de Madox Brown 

280- «NOCTURNO»

Romeu, sério, chato e de chapéu
Na mão, frente ao portão com Julieta,
Conversa sobre amor — a Lua no céu,
Seu tédio, suas regras de etiqueta —,

Mas banalmente, coisa bem discreta,
Sem dar a mínima para o escarcéu
Do destino, enquanto, atrás da maçaneta...
Um golpe, um baque, outro baque, um réu!

O sangue até que cai bem no luar —
O herói ri; e assim, bem obliquamente,
Rola sobre a lua um íntimo olhar

(Nada de “Até depois” ou “Para sempre”)
E as moças, que se acabam de chorar,
Dizem: “Que clímax é esse, minha gente!”

T. S. Eliot

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«Morgana Fala», por Marion Zimmer Bradley.

«Morgana Fala»
Conto de Marion Zimmer Bradley

279- «MORGANA FALA»

Em vida, chamaram-me de muitas coisas: irmã, amante, sacerdotisa, maga, rainha. Na verdade cheguei a ser maga, e poderá vir um tempo em que tais coisas devam ser conhecidas. Verdadeiramente, porém, creio que os cristãos darão a última palavra. O mundo das fadas afasta-se cada vez mais daquele em que Cristo predomina. Nada tenho contra o Cristo, apenas contra os seus sacerdotes, que chamam a Grande Deusa de demônio e negam o seu poder no mundo. Alegam que, no máximo, esse seu poder é o de Satã. Ou vestem-na com o manto azul da Senhora de Nazaré – que realmente foi poderosa, a seu modo, que, dizem, foi sempre virgem. Mas o que pode uma virgem saber das mágoas e labutas da humanidade?

E, agora, que o mundo está mudado e Arthur –  meu irmão, meu amante, rei que foi e rei que será – está morto (o povo diz que ele dorme) na ilha sagrada de Avalon, é preciso contar as coisas antes que os sacerdotes do Cristo Branco espalhem por toda parte os seus santos e as suas lendas. Pois, como disse, o mundo mudou. Houve um tempo em que um viajante, se tivesse disposição e conhecesse apenas uns poucos segredos, poderia levar sua barca para fora, penetrar o Mar do Verão e chegar não ao Glastonbury dos monges, mas à ilha sagrada de Avalon; isso porque, em tal época, os portões entre os mundos vagavam com as brumas, e estavam abertos, um após o outro, ao capricho e ao desejo do viajante. Esse é o grande segredo, conhecido de todos os homens cultos de nossa época: pelo pensamento criamos o mundo que nos cerca, novo a cada dia.

E agora os padres, acreditando que isso interfere no poder do seu Deus, que criou o mundo de uma vez por todas, para ser imutável, fecha os portões (que nunca foram portões, exceto na mente dos homens) e os caminhos só levam à ilha dos padres, que eles protegeram com o som dos sinos das suas igrejas, afastando todos os pensamentos de um outro mundo que vivia nas trevas. Na verdade, dizem eles, se aquele mundo algum dia existiu, era propriedade de Satã, e a porta do Inferno, se não o próprio Inferno.

Não sei o que o Deus deles pode ter criado ou não. Apesar das histórias contadas, nunca soube muito sobre seus padres e jamais usei o negro de uma de suas monjas-escravas. Se os cortesões de Arthur em Camelot fizeram de mim esse juízo, quando fui lá (pois sempre usei as roupas negras da Grande Mãe em seu disfarce de maga), não os desiludi. E, na verdade, ao final do reino de Arthur, teria sido perigoso agir assim, e inclinei a cabeça à conveniência, como nunca teria feita a minha grande Senhora Viviane, Senhora do Lago, que depois de mim foi a maior amiga de Arthur, para a transformar mais tarde em sua maior inimiga, também depois de mim.

A luta, porém, terminou. Pude finalmente saudar Arthur, em sua agonia, não como meu inimigo e o inimigo de minha Deusa, mas apenas como meu irmão, e como um homem que ia morrer e precisava da ajuda da Mãe, para a qual todos os homens finalmente se voltam. Até mesmo os sacerdotes sabem disso, com sua Maria sempre-virgem em seu manto azul, pois ela, na hora da morte, também se transforma na Mãe do mundo.

E assim, Arthur jazia enfim com a cabeça em meu colo, vendo-me não como irmã, amante ou inimiga, mas apenas como maga, sacerdotisa, Senhora do Lago; descansou, portanto, no peito da Grande Mãe, de onde nasceu, e para quem, como todos os homens, tem de finalmente voltar. E talvez, enquanto eu guiava a barca que o levava, desta vez não para a ilha dos padres, mas para a verdadeira ilha sagrada no mundo das trevas que fica além do nosso, para a ilha de Avalon, aonde, agora, poucos, além de mim, poderiam ir – ele estivesse arrependido da inimizade surgida entre nós.

Ao contar esta história, falarei por vezes de coisas que ocorreram quando eu ainda era demasiado jovem para compreendê-las, ou quando não estava presente. Meu leitor fará uma pausa e dirá, talvez: “Esta é a sua magia.” Mas eu tive sempre o dom da Visão, dever o interior da mente dos homens e das mulheres; e durante todo esse tempo, estive perto de todos. Assim, por vezes, tudo o que pensavam era do meu conhecimento, de uma forma ou de outra. Por isso, contarei esta história.

 Um dia também os padres a contarão, tal como a conhecem. Talvez entre as duas se possam perceber alguns lampejos de verdade.

O que os sacerdotes não sabem, com o seu Deus uno e a sua verdade única, é que não existe história totalmente verdadeira. A verdade tem muitas faces e assemelha-se à velha estrada que conduz à Avalon; o lugar para onde o caminho nos levará depende da nossa própria vontade e de nossos pensamentos, e, talvez, no fim, cheguemos ou à sagrada ilha da eternidade, ou aos padres, com seus sinos, sua morte, seu Satã e Inferno e danação… Mas talvez eu seja injusta com eles. Até mesmo a Senhora do Lago, que odiava a batina do padre tanto quanto teria odiado a serpente venenosa, e com boas razões, censurou-me certa vez por falar mal do Deus deles.

“Todos os deuses são um Deus”, disse ela, então, como já dissera muitas vezes antes, e como eu repeti para minhas noviças inúmeras vezes, e como toda sacerdotisa, depois de mim, há de dizer novamente, “e todas as deusas são uma Deusa, e há apenas um iniciador. E a cada homem a sua verdade, e Deus com ela.”

Assim, talvez a verdade se situe em algum ponto entre o caminho para Glastonbury, a ilha dos padres, e o caminho para Avalon, perdido para sempre nas brumas do Mar do Verão. 

Mas esta é a minha verdade; eu, que sou Morgana, conto-vos estas coisas, Morgana que em tempos mais recentes foi chamada Morgana, a Fada.

Marion Zimmer Bradley

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

DMITRI SHOSTAKOVICH
«Romance (The Gadfly)»
Poet'anarquista

PENSAMENTO...

William Faulkner
Escritor Norte-Americano

Pensamento...

«Entre a dor e o nada, escolho a dor.» 

William Faulkner

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

OUTROS CONTOS

«A Morta», por Florbela Espanca.

«A Morta»
Morte de Virgínia, pintura de António Parreira

278- «A MORTA»

Isto aconteceu.

A Morta ouviu dar a última badalada da meia-noite, ergueu os braços, e  levantou a tampa do caixão. Desceu devagarinho, circunvagou em redor os  olhos de pupilas sem luz; os outros mortos, bem mortos, dormiam  pesadamente. Puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite. O vestido  branco manchou o negrume das sombras. Fúnebres ciprestes, almas de tísicos  bailavam numa clareira uma macabra dança de roda. Avançou lentamente pela  avenida soturna, voltando para eles os glóbulos vítreos dos seus olhos sem  luz. Parou um momento, clarão no meio de sombras, a ver um pequenino, nu e branco como um mármore grego, que piedosamente se entretinha a encher  de lágrimas uma urna partida, onde as pombas viriam beber de dia. Um  suicida, escavando a terra com as unhas, procurava o seu sonho, porque se  tinha perdido.

As estátuas descansavam das suas atitudes contrafeitas. A saudade alisava as  roupagens roçagantes, e sentava-se com a face entre as mãos, olhando  vagamente a noite. Uma musa de curvas sensuais, num túmulo de poeta,  cerrava languidamente os olhos e fazia com a boca o gesto de quem beija. Um  sapo enorme, de olhos magníficos como estrelas, lançava a sua nota rouca,  refastelado num fofo leito de lírios.  

A Morta caminhava num passo de morta, um ciciar de brisa na folhagem; os  sapatinhos de cetim branco mal pousavam nas pedras do caminho; as pupilas  sem luz não tinham olhar, e viam. A Morta sabia aonde ia.

A Morta ia a lembrar-se, que os mortos também se lembram; na solidão do  túmulo há tempo e sossego para lembrar; é lá que as virgens tecem as mais  preciosas lhamas dos seus sonhos. Para quem saiba ouvir, há vibrações de  carnes mortas nos túmulos brancos das que morreram puras, como que um  frémito brando de erva a crescer...

A Morta ia a lembrar-se:

Sentira num êxtase sobre-humano, num assombroso sair de si, numa  prodigiosa transfiguração de todas as fibras do seu ser, a pressão de uns dedos  quentes que lhe desciam as pálpebras sobre as pupilas paradas. Uma boca, que  ela nunca sonhara tão macia e fresca, roçara-lhe a macieza e a frescura da sua,  em beijos miudinhos, cariciosos, castos como aquelas gotas de chuva que nas  tardes de Verão, infantilmente, recolhia nas suas duas mãos estendidas.

Vestiram-na de branco, ungiram-na de branco, envolveram-na numa nuvem  de branco. Era branca a almofada de rendas onde lhe pousaram a cabeça,  devagarinho, no gesto sagrado de quem pousa uma relíquia três vezes santa nas  rendas de um altar. Brancos, os sapatinhos de cetim, aqueles mesmos que mal  roçavam agora as pedras do caminho. Branca, a grinalda de rosas de toucar  que lhe prenderam à seda dos cabelos. Branco, o vestido, o seu último vestido

do seu último baile. Brancos, os cachos de lilás, as rosas e os cravos que eram  como asas de pombas a cobri-la. Branca, a caixinha de sete palmos  pequeninos onde a mãe a deitou como a deitara anos a fio na brancura do  berço.

E agora, as cartas do noivo, o retrato do noivo, as dulcíssimas recordações do  noivo. E, piedosamente, cuidadosamente, não fosse esquecer algum;? pétala  de flor, algum fiozinho dos seus lindos cabelos pretos, algum pedacinho de  papel onde as queridas mãos morenas lhe tinham traçado o nome, tudo lhe  levaram, como uma divina oferta a um ser divinizado. Tudo levou. Parecia  que se tinha tornado de repente mais pequenina, mais imaterial, mais  acolhedora, para que tudo lá coubesse, para que nada esquecesse, para que  nada ficasse a gelar lá fora no frio glacial da indiferença deste mundo que  transe as almas e as coisas. Que lhe pusessem tudo, o caixão não pesaria mais  por isso... Todo o ouro a jorros das suas misteriosas quimeras, todos os  fúlgidos brocados tecidos dos preciosos metais, semeados das gemas  cintilantes das suas miragens de amor, todas as altas torres brancas dos seus  sonhos, tudo era tão leve, tão leve, que a caixinha de sete palmos pesava  menos que uma pena de colibri.

Depois, a tampa da caixinha tombou brandamente entre o ciciar dos soluços,  e toda a brancura se apagou; uma noite de luar que se cerrasse em sombras...

E já foi... Desceu os degraus da escada, baloiçada no seu esquife branco, com  a cabeça, tonta do perfume das flores e dos seus sonhos de amor encerrados  com ela, corno se lá tivessem encerrado, numa suprema oferta, todas as  primaveras que no mundo tinham de florir depois dela.

E lá a deixaram. A vaga que a levara, quebrara-se de encontro â praia., e o  esquife, barco sem velas, dormia no porto ao abrigo dos vendavais, das  medonhas invernias desencadeadas, das outras vagas maiores que se  quebravam ao longe, num marulhar incessante, no mar alto da vida. A Morta  podia dormir, a Morta podia sonhar.

Silêncio, Um silêncio feito de fluidos rumorosos, do vago rastejar de um  perfume, de um leve vapor de incenso pairando. Silêncio como um vago  clarão de fogo-fátuo, como o rasto, a poalha de um desejo imaterial, silêncio  em torno da vasta catedral de sombras onde as sombras vestidas de branco  pontificam pelas noites.

Os outros mortos, ao lado, dormiam pesadamente, descansadamente. Um dia  tinham pendido os braços num gesto de fadiga e tinham ficado assim pelos  séculos dos séculos. A Morta viu-os a todos e de nenhum se lembrou; o  mundo ficava longe.

Começou depois o encantamento. Todas as tardes, à hora em que o  crepúsculo, todo vestido de glicínias, descia com a doçura dumas pálpebras  que se fechassem, o perfume das rosas, dos cachos de lilás, das suas  recordações de amor encerradas com ela, fazia-se mais denso, corporizava-se,  tornava-se nuvem, unguento divino que a inundava, que a aromatizava toda.  Os passos, letras de um poema que se sabia de cor, mal se ouviam, perdidos  ainda no coração da cidade, gritante, alucinada cidade dos vivos... mas, agora, vinham mais perto, distinguiam-se melhor, eram mais arrastados, tateavam o  chão, tomavam posse das pedras do caminho da silenciosa cidade dos mortos.

Os sete palmos brancos onde as flores dormiam de encontro à carne branca  da virgem eram como um enxame de abelhas de ouro: zumbiam lá dentro  todas as litanias de amor, batiam desvairadamente os corações dos cravos,  abriam-se sedentas as pequeninas bocas das mil florinhas de lilás, aos seios  pálidos das rosas aflorava uma onda levíssima de carmim.

A mão do noivo empurrava a porta do jazigo. Os outros mortos, ao lado, não  o sentiam entrar; braços pendentes num gesto de fadiga, tinham ficado assim  pelos séculos dos séculos.  

Entre o vivo e a morta o diálogo era de uma sobre-humana beleza.

Essência de almas, as almas tocavam-se e era tão cândido e tão profundo  aquele choque, que as misteriosas forças desse fluido criavam outros fluidos,  sopros, hálitos de almas, desses que os predestinados sentem às vezes passar  como asas invisíveis roçando um rosto na escuridão. Diálogo em que as bocas  ficavam mudas, em que os sons eram imateriais e os gestos intangíveis e o  perfume, que é a alma dos sentimentos, não era mais pesado que uma essência  de perfume.

O vivo e a morta falavam, e o que eles diziam não o podem entender os vivos  nem talvez mesmo os outros mortos, aqueles que ao lado dormiam  pesadamente, braços pendidos num gesto de fadiga pelos séculos dos séculos.

O perfume agora era mais brando, narcisava-se, palpitava ainda como um  rufiar de asas cansadas ao chegar ao ninho... A mão do noivo puxava para si a  porta do jazigo... os passos perdiam-se ao longe na silenciosa cidade dos  mortos, depois na alucinante cidade dos vivos, e tudo se aquietava.  Aproximava-se o silêncio, que trazia pela mão, devagarinho, não fosse  tropeçar, a noite cega.

Mas, uma tarde, a Morta esperou em vão, e esperou outra e outra e outra  ainda em infindáveis horas de infindáveis tardes. Na caixinha de sete palmos  onde os cravos e os lilases eram viçosos e frescos ainda, como se uma eterna  madrugada os banhasse de orvalho, começaram a enlanguescer os perfumes, a  desmaiar os seios nus das rosas; as cartas de amor amareleciam; os braços da  virgem iam esboçando já o gesto de fadiga dos outros mortos que ao lado  dormiam pesadamente.

Foi então que uma noite mais cega ainda que as outras todas que o silêncio  trazia pela mão, uma noite em que ela sentia gotejar lá fora as lágrimas de todo  um mundo de que se tinha esquecido, foi então que ela ergueu os braços,

levantou brandamente a tampa do caixão, e desceu devagarinho... foi então  que ela puxou para si a porta do jazigo que dava para a noite.

E a Morta lá foi pela soturna avenida, no seu passo, de manto a roçagar.  Empurrou a porta apenas encostada — para que se há de fechar a porta aos  mortos?... —e saiu... e na cidade adormecida foi uma flor de milagre que os  vivos sentiram desabrochar. Foram mais ternos os beijos das noivas; as mães  sentiram mais calmos os sonhos dos filhos como se a bênção do céu descesse  misericordiosa sobre os berços; os braços das amantes ampararam melhor as  cabeças desfalecidas, e os que estavam para morrer tiveram pena da vida.

Atravessou ruas ermas, estradas solitárias povoadas de sombras mais vãs e  fugidias que ela era; procurou com as suas pupilas sem luz o clarão que as  acendera, estendeu os braços a todos os gritos, andou de porta em porta,  subiu a todos os lares, revolveu todas as agonias, debruçou-se em todos os  abismos, penetrou o mistério de todos os sonhos. E cada vez as sombras  eram mais vãs e fugidias, e os clarões iam-se apagando, estrelas-cadentes no  negrume cerrado daquele Gólgota. Nada!

Foi então que lhe chegou aos ouvidos um ciciar brandinho... Seriam passos?...  Rufiar de asas?... Folhas de Outono tombando?...

E a Morta parou.

Marulho de ondas pequeninas. O rio.

Na taça de prata, cinzelada a traços de maravilha pelas mãos dos gênios das  águas, erguida ao alto por mãos misteriosas e invisíveis, dormia todo o azul do  infinito. O seu vestido branco aureolou-se de sonho, teve tons azulados de  nácar e madrepérola, claridades fosforescentes de fogo-fátuo; como se lhe  batesse de chapa todo o luar dos céus longínquos, lembrou um manto de  Virgem; as mãos, num gesto de graça, foram duas minúsculas conchas azuis.  Era ali.

Debruçou-se... Marulho de ondas... E a morta foi mais uma onda, uma onda  pequenina, uma onda azul na taça de prata a faiscar...

Isto aconteceu.

De manhãzinha, quando as pombas sedentas vieram beber as lágrimas na urna  quebrada, quando o sapo, de magníficos olhos como estrelas, deixou o seu  fresco leito de lírios, e a saudade se enrodilhou de novo no suntuoso túmulo  de mármore, a soluçar, quando a musa de curvas sensuais moldou a boca que  toda a noite dera beijos na imobilidade rígida das linhas austeras e frias,  quando enfim as sombras se esvaíram na silenciosa cidade dos mortos, um  caixão foi encontrado vazio, uma caixinha branca de sete palmos pequeninos, onde cartas de amor amareleciam e flores deixavam pender as pálidas cabeças  desmaiadas.

Florbela Espanca