quarta-feira, 23 de abril de 2014

OUTROS CONTOS

«O Casamento Enganoso», por Miguel de Cervantes.

Por aqui- «LITERATURA» sobre Miguel de Cervantes.

«O Casamento Enganoso»
Conto de Miguel de Cervantes

126- «O CASAMENTO ENGANOSO»

Miguel de Saavedra Cervantes, o pai do gênero romance com Las Aventuras Del lngenioso Hidalgo Don Quijote de La Mancha, ou simplesmente D. Quixote, o livro mais famoso do mundo depois da Bíblia e até hoje a obra mais original e humorística criado pelo engenho humano, escreveu poemas, comédias e farsas, além de suas Novelas Exemplares. O Casamento Enganoso é um ótimo exemplo de comédia de costumes da época.

Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, além da Porta do Campo, um soldado que, por usar a espada como bordão e pela fraqueza das pernas e a palidez do semblante, revelava claramente - embora a temperatura não fosse tão quente - que ele deveria ter transpirado durante vinte dias toda a disposição que, com toda a certeza, adquirira numa só hora. Andava ziguezagueando, tropeçando toda hora, como um convalescente, e, ao transpor o portal da cidade, percebeu aproximar-se em sua direção um amigo a quem não via há mais de meio ano. O amigo, benzendo-se como se visse alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

- O que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? Como é possível que estejais por aqui? Imaginava-o em Flandres, de lança em riste, e não por estas bandas arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?

Campuzano respondeu:

- Se estou ou não nesta terra, senhor Licenciado Peralta, a minha simples presença lhe responde. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder senão que estou saindo daquele hospital onde sofri quatorze suadouros por causa de uma mulher a quem escolhi como minha, quando jamais o deveria ter feito.

- Quer vossa mercê dizer que se casou? - perguntou Peralta.

- Sim - respondeu Campuzano.

- E teria sido por amor? - disse Peralta, acrescentando em seguida: - Tais casamentos sempre trazem arrependimento.

- Não saberei se foi por amor - respondeu o alferes -, embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro remédio sequer para aliviá-las. Mas você me perdoe; não posso manter longas conversas neste lugar. Qualquer outro dia, com comodidade, contar-lhe-ei minhas aventuras; são as mais novas e originais que vossa mercê terá ouvido em todos os seus longos dias de vida.

- Não será como dizeis - falou o Licenciado -, pois gostaria que viesse à minha pousada para ali desabafarmos nossas mágoas. Além disso, tenho lá uma comida muito própria para convalescentes. Embora tenha sido preparada para dois, meu criado contentará com um pastel. E se a sua convalescença o permitir, umas fatias de presunto servirão para nos abrir o apetite. A boa vontade com que lhe ofereço, não somente agora, mas todas às vezes que vossa mercê quiser, fica acima de qualquer dúvida.

Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite e as ofertas. Foram ambos a São Llorente, onde ouviram missa e depois Peralta levou o amigo para a sua casa dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Mal Campuzano concluíra pediu-lhe Peralta que narrasse os acontecimentos que tanto o haviam abalado. 

Campuzano não se fez de rogado e pôs-se logo a falar:

- Vossa Mercê bem se lembra senhor licenciado Peralta, como fui nesta cidade amigo do capitão Pedro de Herrera, que agora vive em Fiandres.

- Bem me lembro - respondeu Peralta.

- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, mal acabávamos a refeição na pousada da Solana onde vivíamos, quando entraram duas mulheres de belo porte, acompanhadas de dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o capitão, encostados ambos a um canto da janela. A outra se sentou numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, sem deixar ver o seu rosto mais do que a transparência do xale o permitia. Embora cortesmente lhe suplicasse que se descobrisse não me foi possível consegui-lo. E para completar a história, fosse de caso pensado ou por simples acaso, ela exibiu suas mãos muito brancas e cobertas de excelentes jóias. Da minha parte, eu estava importantíssimo com aquela grande corrente que vossa mercê terá talvez conhecido, o sombreiro com plumas e cordões, o traje colorido e a arrogância de um militar, tão imponente aos olhos da minha própria vaidade que me considerava a pairar no ar. Mesmo assim, roguei-lhe que descobrisse a face, ao que ela respondeu:

"Não sejas inoportuno. Tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga, pois embora seja mais honrada do que esta resposta sugere, quero ver se vossa discrição corresponde à vossa galhardia. Só então folgarei que me vejais."

- Beijei-lhe as mãos pela grande mercê com que me contemplava, em troca da qual lhe prometi punhados de ouro. O capitão concluíra sua conversa. Elas se foram, com seus criados atrás. O capitão me disse que a dama lhe pedira para levar algumas cartas a outro capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas ele bem sabia que eram para o amante. Eu ficara abrasado pelas mãos de neve que havia visto e ansioso pelo rosto que desejava ver. E assim, no dia seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era extremamente bela, mas era-o de modo a poder nos prender pelo tato, pois tinha um tom de voz tão suave e penetrante que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios. Adulei, garganteei, prometi, dei enfim todas as demonstrações que me pareciam necessárias para me tornar benquisto. Mas ela parecia feita para ouvir semelhantes ou maiores ofertas e discursos. Era toda ouvidos e nenhuma surpresa. Concluindo, nossos colóquios duraram quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, no entanto, a colher o fruto cobiçado.

- Nos momentos em que a visitei - prosseguiu ele -, encontrei sempre a casa livre; jamais percebi indícios de parentes, reais ou fingidos. Servia-lhe certa moça mais astuta do que simplória. Tratando de meus amores como a um soldado em vésperas de partir, apertei finalmente à senhora Dona Estefânia de Caicedo - é esse o nome de quem assim me deixou - que respondeu: "Tola seria eu, senhor alferes Campuzano, se quisesse me vender a vossa mercê por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos cochichem e os empregados comentem. Nem de meus parentes herdei coisa alguma, mas apesar disso, o que tenho aqui em casa vale - bem contados - dois mil e quinhentos escudos. E isto em coisas que, vendidas, se converterão em bom dinheiro. Com essa fortuna procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. A quem, juntamente com o arranjo da minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir. Príncipe algum terá cozinheira mais cuidadosa ou quem melhor saiba fazer um guisado no ponto. Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Na verdade, sei mandar e ser obedecida.

Nada desperdiço e muito economizo. O dinheiro não vale menos e sim mais quando gasto sob minha orientação. A roupa branca que é minha é muita e da melhor, mas não foi adquirida em lojas ou com vendedores ambulantes; estes dedos e os de minhas criadas fizeram-na, e se fosse possível tê-la tecido em casa, assim teríamos feito.

Digo isso sem modéstias, pois não há mal algum quando a necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento ainda que, procuro marido que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois saia por aí falando... Se vossa mercê souber apreciar a prenda que nesse momento se lhe oferece, eis-me aqui a vossa disposição, sujeita a tudo quanto vossa mercê ordenar, e isso sem me pôr em leilão, que é a mesma coisa que andar em língua de casamenteiros. “Não há nada para consertar o conjunto, como as suas próprias partes.”

Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas nos calcanhares, julgando a felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e, oferecendo-se-me tão à mão tal quantidade de bens - já os convertera mentalmente em dinheiro! -, sem mais comentários do que aqueles a que dava lugar à ventura (que me embrulhava o raciocínio), respondi-lhe que me sentia muito alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus haveres, que não eram tão poucos que não valessem, junto com aquela corrente que trazia no peito e outras joiazinhas que estavam em casa, além das minhas galas de soldados, mais de dois mil ducados, os quais, juntos aos mil e quinhentos dela, formavam quantia mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e ainda possuía alguns bens. Tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com o tempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquelas noites acertamos o nosso casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros. E nos próximos três dias de festas que vieram logo pela Páscoa fizeram-se as proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela. Tratei-o como se fosse um parente, com amabilidades, como as que até então ele dirigira à minha nova esposa. Falava, porém com intenção tão falsa e hipócrita que prefiro ficar calado. Embora esteja dizendo apenas verdades, não são verdades de confessionário, dessas que não podem deixar de ser ditas.

O criado conduziu meu baú da pousada para a casa da minha mulher. Enfiei nele, diante dela, minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras três ou quatro não do mesmo tamanho, porém na melhor qualidade possível, assim como três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas e os chapéus e entreguei-lhe os quatrocentos reais que possuía para as despesas da casa. Seis dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, como genro pobre em casa de sogro rico.

Pisei caros tapetes, amassei colchas da Holanda, iluminei-me com candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo as doze e sesteando às duas. Dona Estefânia e a criada se excediam em agrados e cuidados. Meu criado, que até ali fora lerdo e preguiçoso, tornara-se num azougue. Os momentos que Dona Estefânia não passava ao meu lado era fácil encontrá-la na cozinha, toda solícita em ordenar guisados que me despertassem o gosto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um novo Aranjuez de flores, banhados que eram em água de flor de laranjeira.

Dias que passaram voando como os anos sob o império do tempo. Por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má reputação com que começara aquele negócio. Ao fim deles, certa manhã - quando ainda no leito de Dona Estefânia - ouviram-se grandes batidas na porta. Ouvi a criada dizer, assomando à janela:
-
 Ah! Seja bem-vinda! Vejam só, chegou antes do que dizia na sua carta...

- Quem é que chegou mulher? - perguntei.

- Quem? - respondeu ela. - Minha Senhora Dona Clementa Bueso. Acompanhada por Dom Lope Melendez de Armendárez, dois criados e Hortigosa, a ama. - Corra mulher, e vai abrir a porta, que eu já vou - disse Dona Estefânia à criada, que parara sem saber que atitude tomar. - E vós, senhor, pelo amor que me tendes não os assusteis nem respondais em meu nome à coisa alguma que contra mim ouvires.

- Mas quem vos ofenderá ainda mais em minha presença? Dizei: que gente é essa que tanto alarma vos causa?

- Não tenho tempo para vos responder - disse Dona Estefânia -, sabei somente que tudo o que aqui se passar será fingido e visa a certo desígnio, o qual o sabereis depois.

Quis replicar-lhe, mas a senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, pois entrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com cordões de ouro, capinha da mesma qualidade, chapéu de plumas verdes, brancas e vermelhas, e um rico cinto de ouro. Metade do rosto vinha oculto por um véu leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Melendez de Almendárez, não menos bizarro nem menos ricamente paramentado. Dona Hortigosa foi a primeira a falar, exclamando:

- Meu Deus! O que é isto? Ocupando o leito da Senhora Clementa, e, além disso, com um homem? Estou vendo milagres hoje nesta casa! Não há dúvida de que Dona Estefânia tomou o pé pela mão e abusou da amizade da minha senhora!

- Tendes razão Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Não devia me aborrecer arranjando amigas que só o sabem ser quando lhes interessam!

A tudo isso, Dona Estefânia respondeu:

- Não fique aborrecida, Dona Clementa Bueso, e acredite que não é sem mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando ficar sabendo do que realmente aconteceu, tenho certeza que haverá de me desculpar e não haverá de sua parte nenhum motivo de queixa.

A esta altura eu já vestira as calças e a camisa e Dona Estefânia me tomou pelo braço e me levou para o outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga pretendia enganar Dom Lope, com quem pretendia se casar. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia e disso tudo ela faria seu dote. Assim que se realizasse o casamento, pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.

- E logo ela me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal nem a nenhuma outra mulher que procure marido honrado, embora por meios escusos.

Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que pretendia fazer, e que primeiro pensasse bem porque poderia, depois, sem ter necessidade, necessitar da justiça para readquirir seus bens. Mas ela respondeu com tanta e tais razões, mostrando quantas coisas obrigavam-na a servir Dona Clementa - coisas de pouca importância, era verdade - que, embora de má vontade e com remorso, concordei com a vontade de Dona Estefânia. Assegurou-me ela que o engano duraria oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outra amiga sua. Acabamos de nos vestir e logo, despedindo-se de Dona Clementa Bueso e do Senhor Lope Melendez de Almendárez, disse a meu criado que carregasse o baú e a seguisse. Também eu a segui, sem me despedir de ninguém.

Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos, esteve lá dentro um bom tempo, falando com ela. Depois apareceu uma criada mandando que entrássemos - eu e o criado. Levou-nos a um pequeno aposento, no qual havia duas camas tão juntas uma da outra que pareciam uma só. Não havia espaço para separá-las; as cobertas pareciam beijar-se. Ali permanecemos durante seis dias e em todos eles não passou uma hora em que não tivéssemos alguma discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em deixar sua casa e pertences, embora fosse para a própria mãe. Durante as discussões, ela ia e vinha pelo quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fora ver em que pé estavam às coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto com ela e o que fizera que tanto a ofendesse, sobretudo insistindo em dizer que fora uma notável loucura e não uma perfeita amizade o que a levara a fazer o que fez. Contei-lhe toda a história, falei que me casara com Dona Estefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande tolice que fizera em deixar a casa e pertences à Dona Clementa, embora com a boa intenção de conseguir um marido do quilate de Dom Lope, começou ela a benzer-se e a persignar-se com tanta agitação e com tantos ais! Jesus! Ai! Jesus!... Que não pude deixar de ficar perturbado. Ela então me disse: "Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também nela pesaria se eu permanecesse calada.

Mas, por Deus e pelo destino, seja lá o que for, viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos pertences que lhe deram como dote. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possui casa nem bens, nem outro vestido a não ser aquele que trás no corpo. E, para tornar visível esse logro, foi que Dona Clementa andou visitando parentes seus em Placêncio e dali esteve fazendo uma novena para Nossa Senhora de Guadalupe.

Neste espaço de tempo deixou Dona Estefânia cuidando de sua casa, pois são realmente grandes amigas. “Claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o senhor Alferes.”

Aqui ela deu fim à conversa e dei princípio eu ao meu desespero, e sem dúvida o teria prolongado se o meu anjo da guarda não acudisse, dizendo ao meu coração para não esquecer que eu era cristão e que o maior pecado dos homens era o desespero por ser o pecado dos demônios. Esta consideração, ou boa inspiração, confortou-me um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e a espada e saísse à procura de Dona Estefânia, com a intenção de lhe dar um castigo exemplar À sorte, porém, que não saberei dizer se melhorava ou piorava as coisas, ordenou que em nenhum lugar onde pensasse encontrá-la, ela estivesse. Fui a São Llorente e encomendei-me a Nossa Senhora; sentei-me depois num banco e com o desgosto fui tomado por um sono tão pesado que não despertasse tão cedo se não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflições à casa de Dona Clementa e encontrei-a tão à vontade como senhora que era dos seus próprios bens; não ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente.

Voltei à casa da minha hospedeira que me disse haver contado a Dona Estefânia como eu já sabia de toda a sua hipocrisia e falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu com a notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, segundo o seu modo de ver, eu saíra a procurá-la com más intenções e piores determinações.

Finalmente disse que Dona Estefânia carregara com tudo que estivesse no baú, sem nele deixar uma só peça de roupa sequer.

Aqui foi que a coisa se deu! Aqui me teve Deus de novo em suas mãos. Fui ver o baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça...

- Bem esperta ela foi - disse neste momento, o Licenciado Peralta - por haver Dona Estefânia levado tanta corrente e tanto cinto, pois, como se diz todos os enterros... etc. etc.

- Esta falta nenhuma pena me deu - respondeu o alferes -, pois também poderei dizer: "Pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha e por Deus, coxo sou eu de um lado..."

- Não sei a que propósito pode vossa mercê dizer isso - respondeu Peralta.

- O propósito - disse o alferes - é de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e brincos poderiam valer quando muito dez ou doze escudos.

- Não é possível - disse o licenciado -, porque a corrente que o senhor trazia no pescoço parecia pesar mais de duzentos ducados.

- Assim seria - respondeu o alferes - se a verdade fosse o que a aparência mostrava; mas como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, os cintos e as jóias e os brincos não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo pudessem descobrir sua qualidade.

- Assim - disse o licenciado -, entre vossa mercê e a Senhora Dona Estefânia, o jogo ficou empatado?

- E tão empatado - respondeu o alferes - que poderíamos embaralhar as cartas de novo. Mas o estrago está em que ela poderá desfazer-se das minhas correntes e eu não do laço em que caí. Sim, porque embora muito me pese, ela é minha mulher.

- Dai graças a Deus, senhor Campuzano - disse Peralta -, que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.

- Assim é - respondeu o alferes. - Porém, com isso tudo, embora não a procure, tenho-a sempre no pensamento, e onde quer que ela esteja está presente a desonra.

- Não sei o que responder - disse Peralta - a não ser lhe trazer à memória dois versos de Petrarca:

Chi chi prende diletto di far frode Non sidé lamentar saltri linganna
- o que significa em nossa língua: "Aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve queixar-se quando é enganado."

- Não me queixo - respondeu o alferes -, e sim lamento, pois o culpado, nem por reconhecer a culpa, deixa de sentir pena do castigo. Bem sei que tentei enganar e fui enganado, feriram-me com as minhas próprias armas, mas não posso permitir que tais sentimentos deixem de vir à tona. Finalmente o que mais importa no meu romance - que tal nome se pode dar à narrativa das minhas aventuras - é ter sabido que Estefânia se fora com o primo, o mesmo que se encontrava em nosso casamento e tempos atrás fora seu amigo para todas as coisas.

Não quis procurá-la para não encontrar o mal que me faltava. Mudei de pousada e de cabelo em poucos dias, começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas e dos cílios antes do tempo: arrumaram-me uma doença que chama calvície. Achei-me deveras limpo: não possuía nem cabelos para pentear nem dinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao mesmo passo da minha miséria, e como a pobreza atropela a honra e a uns leva à forca outros ao hospital e a outros ainda os faz bater nas portas dos seus inimigos com pedidos e súplicas, o que é uma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz, e por não ter podido cuidar das roupas que me protegeriam e assegurariam a saúde, ao chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição para ele me dirigi e nele tomei quarenta suadouros. Dizem que ficarei curado, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto Deus irá de remediar.

Miguel de Cervantes

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