sábado, 19 de abril de 2014

OUTROS CONTOS

«Retratos», por Eveline Sambraz.

«La Gallarda»
Milo Manara

121- «RETRATOS»
«La Gallarda»

Era a mulher mais estranha, enigmática e mais formosa da família. Casada com o João José, sobre ela corriam as mais desencontradas histórias. Dizia-se que por amor se fizera portuguesa. Dizia-se que o João José, perante a negativa do pai dela, em deixar que o casamento fosse avante, a tinha “roubado” numa muito rocambolesca e romântica noite de primavera. Noite que meteu tiros e tudo. A ser verdade, não teria sido muito romântica essa dita noite. Dizia-se que dera abrigo a muitos refugiados da guerra civil espanhola, quando estes, em desespero, lhe tinham batido à porta buscando auxílio. Mulher de vasta cultura, também se dizia que tinha sido educada num dos melhores colégios internos da Extremadura, talhada para ser uma señorita da alta sociedade de Badajoz, ou até mesmo de Madrid. 

«Senhora da Boa Nova»
Escultura de Carlos Damas

O seu pai, don Miguel Sambraz, grande agrário extremeño, muito católico, também possuía propriedades em Portugal, ali para os lados da Mina do Bugalho, e era presença habitual na Romaria da Senhora da Boa Nova, pela qual tinha uma grande devoção. Ora acontece que aí por volta de 1933, bastante antes da guerra civil espanhola, por ocasião da romaria, a azinheira que deu guarida à família de don Miguel, ficava mesmo ao lado de outra azinheira que abrigava a família dos Potra, onde sobressaía o porte vaidoso e altaneiro do João José. Primeiro, olharam-se de azinheira para azinheira, mediram-se de longe: “Quem será aquele peralta”, pensou ela – “De quem serão aqueles olhos violeta”, pensou ele. 

O Princípio de Tudo 
«João José e La Gallarda»
Milo Manara

E foi o princípio de tudo. No fim da tarde calmosa já passeavam lado a lado pelo caminho dos namorados, entre a ribeira e o cruzeiro. Casaram três anos depois, exactamente na igreja de Nossa Senhora da Boa Nova: A filha do agrário espanhol e o contrabandista. Quem diria! E é graças a esse casamento que eu hoje posso escrever estas linhas, pois sou neta deles.
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«Rufino Potra»
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«Rufino Potra»

Muito namoradeiro, irmão mais velho do João José da narrativa anterior. Nunca se casou. Mas dizem que deixou filhos entre Santiago Maior e Santiago Rio de Moinhos. Isto para só falarmos de Portugal. Nunca cheguei a apurar a veracidade desses ditos. Fosse como fosse, foi esse feitio namoradeiro que lhe ditou a morte. No fim da década de vinte, apaixonou-se por uma espanhola de Cheles, mulher muito bonita, muito charmosa, fazendo fé nas estórias que me chegaram. Mas casada! O romance terá sido muito breve, mas intenso. Durou enquanto o marido da senhora não teve conhecimento que a mulher o enganava com aquele portuguesinho atrevido que se pavoneava pela vila estremeña, sempre de viola a tiracolo, e entretendo a mocidade com modas de “saias” ao jeito da nossa região. Por Cheles tinha pousada, e de noite dedicava-se ao contrabando. Estava sempre na mira da Guarda Civil, dos Carabineiros e das raparigas bonitas que admiravam a sua desenvoltura, galhardia e ar canalha. 
«Local onde Rufino Potra foi Baleado»
Capela de Nossa Senhora da Boa Nova

Apareceu morto, baleado no peito, no adro da igreja de Nossa Senhora da Boa Nova. Ao lado estava um saco com contrabando que vinha de Espanha. Será assim fácil deduzir que não o mataram para o roubar. Isto também deixa de lado a hipótese de uma acção da Guarda Fiscal. Continuando a fazer fé no que me contaram, parece que aquilo foi um ajuste de contas antigas. Terá sido o marido da senhora que contratou um grupo de meliantes espanhóis para lavar a honra que o português manchara. E parece que o abate teria que ser em território português, a fim de evitar especulações. Verdade? Mentira? Estórias às quais se acrescenta um ponto? Vá lá a gente saber agora, quando já passaram quase cem anos sobre o acontecido. O que dele hoje resta são velhas e amarelecidas fotografias que mostram um homem alto, com bigodes caídos, ar gingão e chapéu ao lado.
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«O Boticário»
Milo Manara
O Boticário

Chamava-se António Potra. Era o irmão mais velho do Rufino e do João José. Com uma diferença de idade que andaria pelos dez anos. Foi ele que criou os irmãos mais novos. Assim que os apanhou homenzinhos fez-se à vida e nunca mais voltou para estes lados. Nunca mais deu notícias. Nem muitas nem poucas. Nenhumas. Foi para Lisboa. Mas eu, nesta minha ânsia de saber quem me antecedeu nesta família um pouco louca, pesquisei e pesquisei, durante os meus tempos de universidade na capital, e acabei por encontrar parentes no bairro das Avenidas Novas. Ainda Potras de sua graça. São proprietários de uma farmácia. E esses parentes, assim gozem de boa saúde, contaram-me esta história: “O António Potra, assim que chegou a Lisboa, começou a trabalhar numa botica. Era homem para todo o serviço. Com cama e mesa, vivia no local de trabalho. Como todos os Potra, era um homem airoso, muito cuidadoso na farpela que envergava e uma certa dose de vaidade na forma de estar. Agradou-se da filha do dono do estabelecimento e ela também lhe correspondeu. Foi dito e feito. Casaram. Neste caso com o apoio e consentimento do sogro, ao contrário do que aconteceu com o irmão mais novo, o meu avô. Teve dois filhos, e agora é uma das netas que está à frente da farmácia.” E o estabelecimento, depois de passar por várias fases, foi modernizado e passou a chamar-se ‘Farmácia Boa-Nova’. Fui eu quem inteirou as minhas primas do que aconteceu ao resto da família, Àqueles que não chegaram a sair do Alentejo.

Eveline Sambraz

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