segunda-feira, 14 de abril de 2014

OUTROS CONTOS

«Fronteira», por Miguel Torga.

«Fronteira»
Contrabandista/ desconheço autor

118- «FRONTEIRA»

Quando a noite desce e sepulta dentro do manto o perfil austero do castelo de Fuentes, Fronteira desperta.
          Range primeiro a porta do Valentim, e sai por ela, magro, fechado numa roupa negra de bombazina, um vulto que se perde cinco ou seis passos depois.
          A seguir, aponta à escuridão o nariz afilado do Sabino. Parece um rato a surgir do buraco. Fareja, fareja, hesita, bate as pestanas meia dúzia de vezes a acostumar-se às trevas, e corre docemente a fechadura do cortelho.
          O Rala, de braço bambo da navalhada que o D. José, em Loivos, lhe mandou à traição, dá sempre uma resposta torta à mãe, quando já no quinteiro ela lhe recomenda não sei quê lá de dentro.
          O Salta, que parece anão, esgueira-se pelos fundos da casa, chega ao cruzeiro, benze-se, e ninguém lhe põe mais a vista em cima.
          A Isabel, sempre com aquele ar de quem vai lavar os cueiros de um filho, sai quando o relógio de Fuentes, longe e soturnamente, bate as onze. Aparece no patamar como se nada fosse, toma altura às estrelas, se as há, e some-se na negrura como os outros.
          O Júlio Moinante, esse levanta o gravelho, abre, senta-se num degrau da casa, acomoda o coto da perna da melhor maneira que pode, e fica horas a fio a seguir na escuridão o destino de um que lhe dói. Era o rei de Fronteira. Morto o Faustino nas Pedras Ninhas, herdou-lhe o
guião. Mas um dia o Penca agarrou-o com a boca na botija, e foi só uma perna varada e as tripas do macho à mostra. Quando, naquele estado, entraram ambos em Fronteira, ele e o animal, parecia que o mundo se ia acabar ali. Mas tinha o filho, o João. E agora, enquanto o rapaz, como os mais, se perde nos caminhos da noite, vai-lhe seguindo os passos da soleira da porta.
          Saem outros, ainda. Devagar, pelas horas a cabo, os que parece terem-se esquecido, vão deslizando da toca. Só mesmo quando não existe mais corpo adulto e válido no povo é que Fronteira sossega.
          Coisa estranha: esta rarefacção que se faz na aldeia, longo de a esvaziar, enche-a. A terra veste-se de um sen¬tido novo, assim deserta, à espera. Pequenina, de casas iguais e rudimentares, escondida do mundo nas dobras angustiadas e ossudas de uma capucha de granito, as horas que medeiam entre o seu coração e Fuentes são tão fundas e carregadas que quase magoam. Quem regres¬sará primeiro?
          Noventa vezes em cada cem, é a Isabel. Aquilo são pés de veludo! Mas às vezes é o Sabino. Sempre de nariz no ar, a bater as pestanas contra a luz da candeia, entra em casa alagado em água e com um bafo tal a aguardente que tomba.
          – Arruma!
          A mulher nem suspira. Pega no saco, mete-o debaixo da cama, e põe-se a lançar o caldo. Por fim, começa:
          – O Valentim?
          – Chumbo. Já passou.
          – O Rala?
          – Uma caixa de conhaque. Vem por Fornos.
          – O Salta?
          – Foi a Torneros. Volta amanhã.
          – A Isabel?
          – Seda. Ao sair do Padilha parecia um bombo.
          E enquanto a maçã-de-adão sobe e desce no pescoço comprido do Sabino, e a malga de caldo se esvazia, das respostas que dá e do mágico ventre da noite, diante do olhar angustiado da Joana e de Fronteira, vão surgindo os que faltam ainda: o João, o Félix e o Maximino.
          Quando algum não regressa, e por lá fica varado pela bala de uma lei que Fronteira não pode compreender, o coração da aldeia estremece, mas não hesita. Desde que o mundo é mundo que toda a gente ali governa a vida na lavoura que a terra permite. E, com luto na alma ou no casaco, mal a noite escurece, continua a faina. A vida está acima das desgraças e dos códigos. De mais, diante da fatalidade a que a povoação está condenada, a própria guarda acaba por descrer da sua missão hirta e fria na escuridão das horas. E se por acaso se juntam
na venda do Inácio uns e outros – guardas e contrabandistas –, fala-se honradamente da melhor maneira de ganhar o pão: se por conta do Estado a vigiar o ribeiro, se por conta da Vida a passar o ribeiro.
          De longe em longe, porém, quando há transferências ou rendições, e aparecem caras e consciências novas, são precisos alguns dias para se chegar a essa perfeição de entendimento entre as duas forças. O que vem teima, o que está teima, e parece aço a bater em pederneira. Mas tudo acaba em paz.
          Desses saltos no quotidiano de Fronteira, o pior foi o que se deu com a vinda do Robalo.
          Já lá vão anos. O rapaz era do Minho, acostumado ao positivismo da sua terra: um lameiro, uma junta de bois, uma videira de enforcado, o Abade muito vermelho à varanda da residência, e o Senhor pela Páscoa. Alémdisso, novo no ofício – na guarda, para onde entrara em nome dessa mesma terrosa realidade: um ordenado certo e a reforma por inteiro. Daí que lhe parecesse o chão de Fronteira movediço sob os pés. Mal chegou e se foi apresentar ao posto, deu uma volta pelo povoado. E aquelas casas na extrema pureza de uma toca humana, e aqueles seres deitados ao sol como esquecidos da vida, transtornaram-lhe o entendimento.
          – Esta gente que faz? – perguntou a um companheiro já maduro no ofício.
          – Contrabando.
          – Contrabando!? Todos!? E as terras, a agricultura?
          – Terras!? Estas penedias!?
          O Robalo queria falar de qualquer veiga possível, de qualquer chã que não vira ainda, mas tinha forçosamente de existir, pois que na sua ideia um povo não podia viver senão de hortas e lameiros. Insistiu por isso na estranheza. Mas o outro lavou dali as mãos:
          – Não. Aqui, a terra, ao todo, ao todo, produz a bica de água da fonte. O resto vão-no buscar a Fuentes.
          Mas nem assim o Robalo entendeu Fronteira e o seu destino. No dia seguinte, pelo ribeiro fora, parecia um cão a guardar. Que o dever acima de tudo, que mais isto, que mais aquilo – sítio que rondasse era sítio excomungado. Até as ervas falavam quando qualquer as pisava de saco às costas. Mal a sua ladradela de mastim zeloso se ouvia, ou se parava logo ou nem Deus do céu valia a um cristão. Em quinze dias foram dois tiros no peito do Fagundes, um par de coronhadas no Albino, e ao Gaspar teve-o mesmo por um triz. Se não dá um torcegão no pé quando apontava, varava a cabeça do infeliz de lado a lado. A bala passou-lhe a menos de meio palmo das fontes.
          Mas Fronteira tinha de vencer. Primeiro, porque o coração dos homens, por mais duro que seja, tem sempre um ponto fraco por onde lhe entra a ternura; segundo, porque o Diabo põe e Deus dispõe.
          Foi assim:
          Apesar de inconvivente e mazombo, um domingo em que havia festa em Fronteira, o Robalo, que estava de folga, não resistiu: chegou-se aos bons. E quem havia de lhe entrar pelos olhos dentro ao natural, cobertinha da luz doirada do Sol? A Isabel! A rapariga tirava a respiração a um mortal. Vinte e dois anos que nem vinte e dois dias de S. João. Cada braço, cada perna, cada seio, que era de a gente se lamber. Ora como ele andava também na mesma conta de primaveras, e não era de pedra, o lume pegou-se à estopa. De tal sorte, que, quando o dia acabou, o Robalo não parecia o mesmo. Evaporara-se-lhe o ar de salvador do mundo, e até já via Fronteira doutro jeito. Se não fosse aquele maldito instinto de castro-laboreiro... Tempos depois, apesar de os amores com a Isabel irem de vento em popa, cama e tudo, ainda o ladrão se lhe sai com esta:
          – Gosto muito de ti, tudo o mais, mas se te encontro a passar carga e não paras, atiro como a outro qualquer.
           A Isabel riu-se.
          – Palavra? !
          – Palavra.
          A mim?!!!
          – A minha mãe, que fosse...
          Desprenderam-se dos braços um do outro melanco¬licamente. E quando no dia seguinte o Robalo voltou ao ninho tinha a porta fechada.
          Como a vida em Fronteira é de noite que se vive, e o Robalo era todo senhor do seu nariz, puderam decorrer meses sem o rapaz pôr os olhos sequer na rapariga. Ela passava o ribeiro como podia, e ele guardava o ribeiro como podia.
          Fronteira olhava.
          E até ao Natal a vida foi deslizando assim.
          Na noite de Consoada, porém, aconteceu o que já se esperava. Parte da guarnição tinha ido de licença. Todos se chegavam ao calor da lareira familiar, saudosos de paz e harmonia. Mas o Robalo ficara firme no seu posto.
          Nevava. Um frio tal que o próprio bafo gelava mal saía da boca. Visto de dentro da capa de oleado, o mundo parecia uma coisa irreal, alva, inefável como um sonho. O céu estava ainda mais silencioso e mais alto que de costume. E qualquer parte do Robalo, sem ele querer,
diluía-se na magia que enluarava tudo. No Minho, numa noite assim... Pena a Isabel ter-lhe saído contrabandista... Tê-la encontrado numa terra daquelas... Senão, mais tarde, quando tivesse a reforma... Até mesmo agora...
          Comovido, deixou-se perder por momentos na vaga mansidão da brancura.
          Mas, como por detrás do homem o guarda continuava alerta, mal acabava de pisar aquele caminho sem pedras, já o seu ouvido de cão da noite lhe trazia à consciência um rumor de passos só pressentidos.
          Acordou inteiro.
          Tchap, tchap, tchap... Pela neve fora, da outra banda, aproximava-se alguém.
          Quem diabo seria? O Carrapito? O Carrapito, não.
Olha o Carrapito meter-se a um nevão daqueles! O Samuel? O Samuel também não.
Era mais atarracado. Só se fosse o Gregório... Sim, porque o Cristóvão, que tinha o mesmo corpo, estava em Vila Seca, no namoro. Vira-o passar...
A pessoa que vinha, caminhava sempre, direita como um fuso ao cano da carabina.
Tchap... Tchap...
          Todo gelado por fora, mas quente da emoção que lhe dava sempre qualquer alma em direcção ao ribeiro, o Robalo esperou. E quando os passos se molharam no rego de água e chegaram à margem, a mola tensa estalou:
          – Alto!
          Mas o gume da palavra de comando não conseguiu cortar sequer os flocos de neve. A sensação que teve ao gritar foi a de um baque amortecido. Uma espécie de tiro à queima-roupa.
          Repetiu:
          – Alto!
          Uma voz cansada entrou-lhe no coração.
          – Sou eu...
          – Tu?!
          – Sou. Mas nem trago contrabando, nem me posso demorar.
          – Tu?!
          – Eu mesmo. E já disse que não trago contrabando, nem me posso demorar.
          Se ele não fosse o Robalo, cego e frio dentro da função, o que lhe apetecia era tomar nos braços aquele corpo amado e rebelde, enfarinhado de neve e não sabia de que outra secreta alvura. Mas era o Robalo guarda, a guardar. Por isso fez arrefecer nas veias a fogueira que o escaldava e estacou o primeiro passo do vulto com nova ordem:
          – Alto, já disse!
          Docemente, numa carícia estranha para os seus ouvidos, quem passava falou:
          – Não berres, que não vale a pena. Este volume todo – é gente. A intenção era boa, era... Mas de repente, em Fuentes, começam-me a apertar as dores... Se não me apego às pernas com quanta alma tinha, nascia-me o rapaz galego. Querias?
          O coração do Robalo não aguentava tanto. Um filho! Um filho seu no ventre de uma contrabandista!
          Regelou-se ainda mais.
          - A mim não me enganas tu. Gente! No posto eu te direi se isso é gente, ou são cortes de seda. Vamos lá!
          Pela neve fora a presença da rapariga era como um enigma sagrado diante dos olhos dele. Mas o guarda guardava.
          – O homem de Deus, deixa-me ir enquanto posso! Olha que se as dores voltam como há bocado, é no sítio onde estiver...
          O Robalo, porém, tinha de levar a cruz ao fim. Já com a Isabel fechada na pobreza da tarimba, esperou ainda o milagre de a sua obstinação acabar em tecidos, em seco e peco contrabando posto a nu.
          Fronteira, contudo, podia mais do que uma absurda obstinação. E, mal a parturiente atirou lá de dentro o primeiro grito a valer, o Robalo ruiu.
          Desesperado, parecia um doido por toda a casa. De quando em quando, arrastado por uma força que não conseguia dominar, chegava-se à porta do quarto, humilde, rasgado de cima abaixo de ternura:
          – Isabel...
          Um berro que estalava fino e súbito fazia-o recuar transido para o mais fundo da sala.
          Até que a trovoada amainou e do pesado silêncio que se fez nasceu para os seus ouvidos maravilhados um choro doce, novo, muito puro, que lhe arrancou lágrimas dos olhos.
          Chegou-se à porta outra vez:
          – Isabel...
          A voz cansada da mulher mandou-o entrar.
          E, quando o dia rompeu, Fronteira tinha de todo ganho a partida. Demitido, o Robalo juntou-se com a rapariga. Ora como a lavoura de Fronteira não é outra, e a boca aperta, que remédio senão entrar na lei da terra! Contrabandista.
          E aí começam ambos a trabalhar, ele em armas de fogo, que vai buscar a Vigo, e ela em cortes de seda, que esconde debaixo da camisa, enrolados à cinta, de tal maneira que já ninguém sabe ao certo quando atravessa o ribeiro grávida a valer ou prenha de mercadoria.

Miguel Torga

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