sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

OUTROS CONTOS

«Memória de Prata», conto poético por Carlos Montemayor. 

«Memória de Prata»
Memória, por René Magritte

94- «MEMÓRIA DE PRATA»

Meu pai costumava fumar à noite
sentado fora de casa.
O calor do verão inundava o mundo.
Todas as estrelas se reuniam sobre nós
para que nenhuma se perdesse.
Olhava o serro da mina
e ao longe se escutava o som dos moinhos,
o rumor subterrâneo de metais, homens e água enferrujada.
Pensava que a prata era branca, brilhante como a chuva de noite
ou como os reflexos do rio ou da água estancada junto às penhas;
pensava até que iluminava a mina como enorme cascata.
Ignorava que era negra,
que era um verão sufocante
como a espuma da asfixia ou a morte,
e que os homens caíam como novas noites
num túnel sem estrelas, sem vento,
sem um pai fumando ao lado deles.

Carlos Montemayor

I - PINTURA versus POESIA

Uma parceria no blogue, ou um cruzamento de artes a partir de hoje no Poet'anarquista. A pintura da artista brasileira Deise Carelli, nascida em Guaratinguetá, a 7 de Maio de 1964 e a poesia de Matias José, heterónimo de Carlos Camões Galhardas, vão estar presentes neste espaço de artes. Agradeço a Deise Carelli a disponibilidade! Mesmo com os fusos trocados, a arte por aqui não perde a estética, venha ela de onde vier. A arte será sempre bem... «Aparecida!».
Poet'anarquista
Deise Carelli

Pintora Brasileira

«Deise Carelli»
Retrato de Paulo Pina
Sobre a artista plástica...

Deise Carelli é uma artista incomum, pois mergulha profundamente em dois problemas de primeira ordem para a pintura: o meio expressivo e o tema. 

Escolheu como veículo expressivo o processo de encáustica, que consiste na aglutinação de pigmentos em ceras quentes. 

Seu meio expressivo remonta às pinturas do Egipto romanizado, os retratos de Fayum.

Seu tema: as igrejas barrocas de Minas Gerais poderiam ser um tributo ao mestre Guignard, não fosse a maneira como a artista se ocupa destas formas. Se Guignard usou as igrejas como elementos pontuais em suas paisagens, como se as construções fossem surgindo naturalmente dos morros, Deise se encanta com o volume e as curvas como elemento auto-suficiente, cada curva é um convite a uma paisagem contida na própria arquitectura.

Este diálogo entre um procedimento ancestral e um tema tão caro à história da arte brasileira, acabam por construir a «Poética de Deise Carelli».
Fonte: IOV- George Gutlich
«Acalmia?...»
Sem título/ Deise Carelli

ACALMIA?...

A vida que decorre
Será agora de mudança
Neste tempo de acalmia?...
Um amor quando morre
Parte sempre com esperança
De viver um outro dia!

Sonho lindo, quase perfeito,
Em tempos quase sonhado,
Ainda lembro esse encanto!...
De tanto quase desfeito,
Tão lindo… quase findado,
Vou lembrando entretanto...

No meu corpo adormeço
Para um novo começo...
Será que mereço?

Matias José 

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

STEVE HACKETT - «Blues With a Feeling»
Blues With a Feeling by Steve Hackett on Grooveshark
Poet'anarquista

BLUES COM UM SENTIMENTO

Blues com um sentimento, que é o que eu tenho hoje
Blues com um sentimento, que é o que eu tenho hoje
Eu vou encontrar a minha mulher se leva toda a noite e dia

Que sentimento solitário quando você está sozinho
Ou um sentimento solitário quando você está sozinho
Quando o que você está amando fugiu com outra pessoa

Você sabe que eu te amo, querida
Para dizer a razão pela qual
Foi e me deixou, querida
Me deixou aqui para chorar

Blues com um sentimento, que é o que eu tenho hoje
Vou encontrar minha mulher se leva toda a noite e dia

Que sentimento solitário ... repetir como antes

Você sabe que eu te amo, querida
Diga-lhe o razão pela qual
Foi e me deixou, querida
Me deixou aqui para chorar

Blues com um sentimento, que é o que eu tenho hoje
Vou encontrar minha mulher se leva toda a noite e dia 

Steve Hackett

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

CARTOON versus QUADRAS

Reforço Seguro
HenriCartoon

«REFORÇO SEGURO»

-Olha, Zé… arranjei este coelho...
Como se pode ver… disfarçado
Pra dar caça ao Passos Fedelho…
Achas que está bem mascarado?

-Não seria melhor outro disfarce?
O coelho parece pouco seguro,
Uma raposa talvez o apanhasse…
O que achas tu, José Inseguro??

POETA

CARTOON versus QUADRA

Crescimento Revisto em Alta
HenriCartoon

«CRESCIMENTO REVISTO EM ALTA»

Fedelho, por esta vez seja meigo...
Não dá pra rever o crescimento
Mais em baixa neste momento?...
Assim a crescer, como lhe chego???

POETA

OUTROS CONTOS

«A Arte de ser Feliz», conto poético por Cecília Meireles.

«A Arte de ser Feliz»
Sorriso, por JPGalhardas

93- «A ARTE DE SER FELIZ»

Houve um tempo em que minha janela se abria
sobre uma cidade que parecia ser feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada,
e o jardim parecia morto.

Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde,
e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.

Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor.
Outras vezes encontro nuvens espessas.
Avisto crianças que vão para a escola.
Pardais que pulam pelo muro.
Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais.
Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar.
Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega.

Às vezes, um galo canta.
Às vezes, um avião passa.
Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino.
E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas,
que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem,
outros que só existem diante das minhas janelas, e outros,
finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.

Cecília Meireles

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Como não podia deixar de ser!)

PACO DE LUCIA - «Entre Dos Aguas»

PENSAMENTO DO DIA...

John Steinbeck
Escritor Estadunidense

Por aqui:
Poet'anarquista

PENSAMENTO DO DIA...

«A Mente Livre Está em Perigo»

«A nossa espécie é a única espécie criativa, e tem apenas um único instrumento criativo, a mente e espírito únicos de cada homem. Nunca nada foi criado por dois homens. Não existem boas colaborações, quer em arte, na música, na poesia, na matemática, na filosofia. De cada vez que o milagre da criação acontece, um grupo de pessoas pode construir com base nela e aumentá-la, mas o grupo em si nunca inventa nada. A preciosidade reside na mente solitária de cada homem. 

E agora existem forças que enaltecem o conceito de grupo e que declararam uma guerra de exterminação a essa preciosidade, a mente do homem. Através das mais variadas formas de pressão, repressão, culto, e outros métodos violentos de condicionamento, a mente livre tem sido perseguida, roubada, drogada, exterminada. E este é um rumo de suicídio colectivo que a nossa espécie parece ter tomado. 

E é nisto que eu acredito: que a mente livre e criativa do homem individual é a coisa mais valiosa no mundo. E é por isto que eu estou disposto a lutar: pela liberdade da mente tomar qualquer direcção que queira, sem direcção. E é contra isto que eu vou lutar com todas as minhas forças: qualquer religião, qualquer governo que limite ou destrua o indivíduo. É isto que eu sou e é esta a minha causa. Posso até compreender que um sistema baseado num padrão tenha que destruir a mente livre, pois esta é a única coisa que pode inspeccionar e destruir um sistema deste tipo. Concerteza que compreendo, mas lutarei contra isso por forma a preservar a única coisa que nos separa das restantes espécies. Pois se a mente livre for morta, estaremos perdidos.» 

John Steinbeck, in 'A Leste do Paraíso'

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

ESPECIAL MÚSICAS DO MUNDO

E as músicas especiais de hoje são...
(25 de Fevereiro de 2014, morre o guitarrista espanhol de flamenco, Paco de Lucia)

Por aqui:

Paco de Lucia
Guitarrista Espanhol de Flamenco

Mito do flamenco Paco de Lucia morre de enfarte aos 66 anos

Faleceu o guitarrista espanhol de flamenco, Paco de Lucía, nome artístico de Francisco Sánchez Gomes, neste 26 de Fevereiro de 2014.

O guitarrista espanhol Paco de Lucía, um dos maiores intérpretes de flamenco de todos os tempos, morreu durante a madrugada desta quarta-feira (26). Encontrava-se no México, na estação balneária de Cancún. O anúncio da morte do artista foi dado pela Câmara de Algeciras, sua terra natal. Paco tornou-se conhecido mundialmente por ter modernizado o flamenco.

A morte de Paco de Lucia representa «uma perda irreparável para o mundo da cultura, para a Andaluzia», declarou o prefeito de Algeciras, José Ignacio Landaluce.

Paco de Lucia, cujo verdadeiro nome é Francisco Sánchez Gomes, nasceu em 21 de Dezembro de 1947 em Algeciras, na região de Andaluzia, no sul da Espanha.  O seu talento excepcional  tornou-o conhecido no mundo inteiro.

Um dos elementos marcantes da carreira do intérprete foi a modernização do flamenco tradicional, associando o ritmo potente e apaixonado da sua música com o jazz. Inspirando-se em diversos estilos musicais, projetou o flamenco a uma dimensão única, que o instalou no patamar de mestre absoluto da sua arte.

Infância musical

A carreira do jovem prodígio começou aos 12 anos, tocando nas salas de flamenco de noite e levando o dinheiro para casa para ajudar os pais. Aos 15, já colaborava em gravações de discos em Madrid e aos 18 fez o primeiro disco. Seu percurso também é marcado pelo encontro com o fenómeno vocal flamenco Camaron de la Izla, com quem gravará dez discos.

Um dos elementos marcantes da carreira do intérprete foi a modernização do flamenco tradicional, associando o ritmo potente e apaixonado da sua música com o jazz. Inspirando-se em diversos estilos musicais, ele projetou o flamenco a uma dimensão única, que o instalou no patamar de mestre absoluto da sua arte. Em 2004, Paco recebeu o prémio Principe das Asturias das Artes por ter ultrapassado as fronteiras e os estilos para se tornar um músico de dimensão universal.

Tocou com os maiores nomes do jazz e nos anos 80 fez uma parceria com John McLaughlin et Al di Meola para gravar o lendário «Friday Night em San Francisco».
Fonte: http://www.portugues.rfi.fr/

«Festival des musiques sacrées de Fès 2013»
PACO DE LUCIA, O SENHOR FLAMENCO

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(26 de Fevereiro de 2008, morre o baterista e percussionista  norte-americano, Buddy Miles)
Actuou com Jimi Hendrix e Carlos Santana em Austin, no Texas, aos 60 anos

BUDDY MILES/CARLOS SANTANA
«Them Changes»

«CITAÇÃO DO DIA»

Victor Hugo
Escritor e Poeta Francês

Ler por aqui:
Poet'anarquista

OUTROS CONTOS

«A Luta com o Monstro», por Victor Hugo.

«A Luta com o Monstro»
Ario-Maru mata um polvo gigante,
por Kuniyoshi

92- «A LUTA COM O MONSTRO»

Depois do grande esforço, Gilliatt precisava recuperar as forças e começou a procurar alimento. Um grande caranguejo, assustado com a presença dele, tinha pulado na água, mas não mergulhou tanto que Gilliatt não o visse. Fugia, e Gilliatt correu atrás dele. De repente, não viu mais nada. O caranguejo metera‑se por algum buraco debaixo do rochedo.
Gilliatt atracou‑se aos relevos da pedra e esticou o pescoço, para tentar ver alguma coisa. Encontrou ali uma anfratuosidade que era mais que uma fenda, era um pórtico. O mar entrava por baixo desse pórtico, mas não era profundo. Via‑se o fundo coberto de pedrinhas, que eram esverdeadas e revestidas de filamentos, indicando que nunca estavam a seco. O caranguejo devia ter‑se refugiado aí.
Gilliatt pôs a faca entre os dentes, desceu do alto da rocha e saltou na água, que o cobriu quase até os ombros. Meteu‑se pelo pórtico, e penetrou num cor­redor com um esboço de abóbada ogival por cima. As paredes eram polidas e lisas. Já não via o caranguejo. Tomara pé, caminhava, e diminuía‑se a luz. Começou a não ver coisa alguma.
Depois de quinze passos, cessou a abóbada e ele se achou fora do corredor. Havia mais espaço e mais luz. Os olhos iam‑se acostumando ao lugar e viam cada vez melhor.
Descobriu ao alcance da mão uma fenda horizontal no granito. Provavelmente estava ali o caranguejo. Meteu a mão o mais que pôde, e procurou às apalpadelas naquele buraco de trevas. De repente, sentiu que lhe agarravam o braço. O que ele experimentou, nesse momento, foi o horror indescritível.
Uma coisa que era delgada, áspera, chata, gelada, pegajosa e viva torcia-se na sombra à roda de seu braço nu, e subia‑lhe para o peito. Era a pressão de uma correia, e o impulso de uma verruma. Em menos de um segundo, uma espécie de espiral tinha‑lhe invadido o punho e o cotovelo e tocava‑lhe o ombro. A ponta metia‑se‑lhe na axila.
Gilliatt atirou‑se para trás, e mal pôde fazê‑lo. Estava como que pregado. Com a mão esquerda que ficava livre, pegou na faca que tinha entre os dentes. Com essa mão, que segurava a faca, apoiou-se no rochedo com um esforço desesperado para retirar o braço direito. Só conseguiu inquietar a ligadura, que se apertou mais. Era flexível como o couro, sólida como o aço, fria como a noite.
Outra correia, estreita e pontuda, saiu do buraco da rocha. Era uma espécie de língua saindo de uma goela e lambendo medonhamente o corpo nu de Gilliatt. De repente, esticando-se desmedida e fina, aplicou-se à pele e enrolou-se no corpo. Ao mesmo tempo um sofrimento inaudito, sem comparação neste mundo, levantava-lhe os músculos. Gilliatt sentia que a pele se abria em muitos pontos, de modo horrível. Parecia-lhe que inúmeros lábios, pregados à carne, procuravam beber-lhe o sangue.
Terceira correia saiu fora do rochedo, apalpou Gilliatt e chicoteou‑lhe os lados como uma corda. Afinal fixou‑se como as outras.
A angústia, no paroxismo, é muda. Gilliatt não soltou um grito. Havia bastante luz para que ele pudesse ver as formas repelentes aplicadas ao seu corpo.
Quarta ligadura, esta rápida como uma flecha, saltou‑lhe em roda do ventre e aí se enrolou.
Era impossível cortar ou arrancar aquelas correias viscosas, que lhe aderiam estreitamente ao corpo por muitíssimos pontos. Cada um desses pontos era um foco de terrível e estranha dor. Sentia como se fosse engolido ao mesmo tempo por uma porção de bocas pequeninas.
Quinta ligadura saltou-lhe ao tronco, sobrepôs‑se às outras e foi enroscar‑se na altura do diafragma. A compressão ajuntava‑se à ansiedade. Gilliatt mal podia respirar.
Aquelas ligaduras, pontudas na extremidade, alargavam-se como as lâminas de espada, da ponta para o punho. Todas cinco pertenciam evidentemente ao mesmo centro. Caminhavam e arrastavam‑se para Gilliatt. Ele sentia deslocarem‑se essas pressões obscuras que lhe pareciam bocas.
Bruscamente uma larga viscosidade redonda e chata saiu de dentro da rocha. Era o centro, e as cinco ligaduras prendiam‑se a ele como raios a um eixo. Do lado oposto daquele disco imundo, podia-se ver o começo de outros três tentáculos, presos no fundo do buraco. No meio dessa viscosidade havia dois olhos que olhavam para Gilliatt. Ele reconheceu naquilo um polvo.
Para acreditar no polvo, é preciso tê‑lo visto. Comparadas a ele, as velhas hidras fazem sorrir. Em certos momentos, parece que o elemento fugidio que flutua em nossos pesadelos encontra paralelo na realidade, e dessas obscuras ficções do sonho surgem criaturas. O ignoto dispõe do prodígio e serve-se dele para compor o monstro. Orfeu, Homero e Hesíodo só puderam fazer a quimera, Deus fez o polvo.
Quando Deus quer, excede no execrável. Admitidos todos os ideais, se o terror é um fim, o polvo é uma obra-prima.
Mas onde reside o perigo do polvo? A baleia é enorme, o polvo é pequeno; o hipopótamo tem uma couraça, o polvo é nu; a jararaca tem um silvo, o polvo é mudo; o rinoceronte tem um chifre, o polvo não tem chifre; o escorpião tem um dardo, o polvo não tem dardo; o tubarão tem barbatanas cortantes, o polvo não tem barbatanas; o morcego tem asas com unhas, o polvo não tem asas; o porco‑espinho tem espinhos, o polvo não tem espinhos; o espadarte tem um gládio, o polvo não tem gládio; o torpedo tem um raio, o polvo não tem raio; o sapo tem um vírus, o polvo não tem vírus; a víbora tem veneno, o polvo não tem veneno; o leão tem garras, o polvo não tem garras; o gipaeto tem um bico, o polvo não tem bico; o crocodilo tem uma goela, o polvo nem tem dentes.
O polvo não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem barbatanas, nem asas, nem espinhos, nem espada, nem descarga elétrica, nem vírus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. Mas o polvo é, de todos os animais, o mais formidavelmente armado.
O que é o polvo? É a ventosa.
Nos escolhos em pleno mar, onde a água mostra e esconde todos os seus esplendores, nas cavas de rochedos não visitadas, nas cavas desconheci­das onde abundam vegetações, crustáceos e conchas, debaixo dos profundos pórticos do oceano, o nadador que se aventura, arrastado pela beleza do lugar, corre o risco de um encontro. Se tiveres esse encontro, não sejas curioso: foge. Entra‑se fascinado, sai‑se apavorado.
Nadando, o polvo conserva‑se, por assim dizer, na bainha. Nada com as antenas fechadas. Imagine um punho costurado dentro de uma manga. Esse punho, que é a cabeça, impele o líquido e avança com um vago movimento ondulatório. Os dois olhos, embora grandes, são pouco distintos por serem da cor da água. Uma forma cinzenta oscila na água, como um trapo. A pouco e pouco o trapo caminha para a vítima, sob a forma de um guarda-chuva fechado sem o tecido. De re­pente abre‑se, e oito raios projetam-se bruscamente em torno de um saco que tem dois olhos. Esses raios vivem, flamejam ondeando. É uma espécie de roda que se desenrola, com 4 ou 5 pés de diâmetro.
Ati­ra‑se ao infeliz. A hidra arpoa o homem, aplica‑se à sua presa, cobre‑a, envolve‑a com os seus longos braços. Por baixo é amarelada, por cima é térrea. Nada pode imitar esse inexplicável matiz de poeira, como se fosse um animal feito de cinza e morando na água. É aracnídeo pela forma, é camaleão pelo colorido. Irritado, torna-se roxo. Coisa horrível, é flácido. Os seus nós garroteiam, o seu contato paralisa. Tem um aspecto de escorbuto e de gangrena. É a moléstia feita monstruosidade.
Não se pode arrancá‑lo, pois agarra‑se estreitamente à sua presa. Como? Pelo vácuo. As oito antenas, largas na origem, vão se estreitando e terminam como agulhas. Debaixo de cada uma delas alongam‑se paralelamente duas filas de pústulas decrescentes, as grossas perto da cabeça, as pequenas na ponta, e cada fileira tem 25. Há cinquenta pústulas em cada antena, e todo o animal tem quatrocentas.
Essas pústulas são ventosas. São cartilagens cilíndricas e lívidas. Na grande espécie, vão diminuindo de diâmetro, desde uma moeda de 5 francos até a grossura de uma lentilha. Esses pedaços de tubos saem e penetram na vítima. Podem penetrar no corpo de um homem mais de uma polegada. É um aparelho de sucção com a delicadeza de um teclado. Levanta‑se, esconde‑se, obedece à menor intenção do animal. As sensibilidades mais delicadas não igualam a contratilidade dessas ventosas, sempre proporcionadas aos movimentos internos do bicho e aos incidentes externos. É um dragão e é uma sensitiva.
Esse monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama cefalópode, e que a legenda chama kraken. Os marinheiros ingleses chamam‑no devil‑fish, o peixe‑diabo. Chamam‑no também blood‑sucker, chupador de sangue. Nas ilhas da Mancha chamam‑no pieuvre.
Quando espreita a caça, o polvo esquiva‑se, diminui‑se, condensa-se, reduz‑se à mais simples expressão. Confunde‑se com a penumbra. Assemelha‑se a tudo, exceto a coisa viva. O polvo é o hipócrita, não se repara nele. Repentinamente, abre-se.
O que pode existir de mais medonho do que uma viscosidade com uma vontade? O viscoso cumulado de ódio?
É no mais belo azul da água límpida que surge essa hedionda estrela voraz do mar. O que é terrível é que não se o sente de longe. Quando a gente o vê, já está agarrado.
O polvo anda e também nada. É um tanto peixe e um tanto réptil. Arrasta-se no fundo do mar. Utiliza as suas oito pernas. Roja-se como a lagarta.
Não tem osso, nem sangue e nem carne, é flácido. Não tem nada dentro, é uma pele. Pode-se virar-lhe os tentáculos de dentro para fora, como dedos de uma luva. Tem um só orifício no centro dos oito raios. É frio todo ele.
Repelente bicho. É um contato hediondo essa gelatina animada que envolve o nadador, onde as mãos mergulham, onde as unhas trabalham, bicho que se rasga sem matar, e que se puxa sem desgarrar, espécie de criatura resvaladiça e tenaz, que escorrega entre os dedos. Nada iguala a súbita aparição do polvo, medusa servida por oito serpentes. Não há aperto igual ao do cefalópode.
É uma máquina pneumática que ataca. Luta-se com o nada ornado de patas. Nem unhas nem dentes, uma escarificação indizível. Uma mordedura é temível, mas menos ainda que uma sucção. A garra não iguala a ventosa. A garra é o animal que entra na carne, a ventosa é o homem sugado pelo bicho. Incham-se os músculos, torcem-se as fibras, rebenta a pele debaixo de um peso imundo, jorra o sangue e mistura-se horrivelmente à linfa do molusco. O bicho sobrepõe-se ao homem por mil bocas infames. A hidra incorpora-se ao homem, o homem amalgama-se à hidra. Ficam sendo um só. O tigre pode apenas devorar, já o polvo (horror!) aspira, puxa o homem a si e em si.
Atado, enviscado, impotente, o homem sente-se lentamente esvaziado naquele terrível saco, que é um monstro. Além do terrível, que é ser comido vivo, há o inexprimível, que é ser bebido vivo.
Aquele monstro era o habitante daquela gruta. Era o medonho génio do lugar, estava em sua casa. Quando Gilliatt, entrando pela caverna em busca do caranguejo, viu o buraco onde pensou que ele se tivesse refugiado, o polvo estava ali à espreita. Gilliatt metera o braço no buraco, e o polvo o agarrou. Estava preso, era a mosca daquela aranha.
Gilliatt tinha água até a cintura, os pés agarrados nos seixos arredondados e resvaladiços, com o braço direito atado pelas correias do polvo e o tronco do corpo quase desaparecendo debaixo das dobras e cruzamentos daquela atadura horrível.
Dos oito tentáculos do polvo, três aderiam à rocha, cinco aderiam a Gilliatt. Deste modo, agarrados ao granito por um lado e ao homem pelo outro, encadeavam-no ao rochedo. Gilliatt tinha sobre o seu corpo 250 chupadores. Estava apertado dentro de uma grande mão, com dedos elásticos e do comprimento de um metro, cheios de pústulas vivas que lhe fuçavam na carne.
Não se pode arrancar o polvo. Quem o tenta, fica mais fortemente amarrado. Ele aperta-se mais, o seu esforço cresce na razão do esforço da vítima. Quanto maior é a sacudidela, maior é a constrição.
Gilliatt só tinha um recurso: a faca. Tinha a mão esquerda livre, e nela a faca aberta. Mas não se cortam as antenas do polvo; é um couro impossível de cortar, pois resvala debaixo da lâmina. E tal é a forma de contato, que um corte nessas correias atingiria a própria carne.
O polvo é formidável, mas há uma maneira de vencê-lo. Os pescadores o sabem, os ouriços-do-mar também o sabem. Ele só é vulnerável na cabeça, e Gilliatt não o ignorava.
Há um momento para vencer o polvo, como o há para o touro. É o instante em que o touro curva o pescoço, é o instante em que o polvo estica a cabeça. Instante rápido. Quem o deixa escapar, está perdido.
O polvo procura apavorar a presa. Agarra e espera o mais que pode. Gilliatt tinha a faca na mão. As sucções aumentavam. Ele olhava para o polvo, o polvo olhava para ele.
De repente o bicho desprendeu do rochedo a sexta antena. Atirando-a sobre Gilliatt, procurou agarrar-lhe o braço esquerdo. Ao mesmo tempo esticou vivamente a cabeça. Mais um segundo, e a sua boca aplicar-se-ia sobre o peito de Gilliatt. Sangrando no corpo e preso pelos braços, ele estaria morto.
Mas Gilliatt vigiava. Espreitado, espreitava. Evitou a antena. No momento em que o bicho ia agarrar-lhe o peito, a sua mão armada abateu-se sobre o bicho. Houve duas convulsões em sentido inverso – a do polvo e a de Gilliatt. Foi luta de dois relâmpagos.
Gilliatt mergulhou a ponta da faca na viscosidade chata. Com um movimento giratório semelhante à torção de uma chicotada, fazendo um círculo à roda dos dois olhos, arrancou a cabeça como quem arranca um dente.
Estava acabado. O bicho caiu. Parecia uma roupa que se desprende. Destruída a bomba aspirante, desfez-se o vácuo. As quatrocentas ventosas largaram ao mesmo tempo o rochedo e o homem. Aquele andrajo foi ao fundo da água.
Gilliatt, ofegante da luta, pôde ver a seus pés, em cima das pedras do fundo, dois montes gelatinosos e informes – a cabeça de um lado, o resto de outro. Dizemos resto, porque não se poderia dizer corpo.
O animal estava bem morto. Gilliatt fechou a faca.

Victor Hugo

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...
(Dedicada a José Camões Galhardas)

(25 de Fevereiro de 1873, nasce o tenor italiano Enrico Caruso)

Enrico Caruso - «Santa Lucia»
Santa Lucia by Enrico Caruso on Grooveshark
Poet'anarquista

SANTA LÚCIA

No mar brilha
A estrela de prata
Plácida é a onda
Prospero o vento;
Venha ágil
Meu barco;
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

Com este zéfiro
Tão doce,
Oh, como é bonito
Estrela no navio.
Os passageiros,
Vamos;
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

E através das cortinas
Proclamar o jantar,
Numa noite
Tão serena.
 Quem não demanda,
Quem não deixa;
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

Sim mar plácido,
vento tão querido,
Esquece os pingos atrás
O marinheiro.
Deve-se gritar
Com alegria:
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

O doce Nápoles,
Ó bendita terra,
onde a sorrir
Criação era,
Você é o império
Harmonia,
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

Ou que você demora?
Bela é à noite;
Expira uma áurea
Fresca e leve;
Venha ágil
Meu barco;
Santa Lúcia! Santa Lúcia!

Enrico Caruso

OUTROS CONTOS

«A Vingança do Prestidigitador», por Stephen Leacock.

«A Vingança do Prestidigitador»
A figura de Mandrake foi baseada em Leon Mandrake, 
um mágico que fazia performances no teatro pelos anos 20, 
usando uma cartola, capa de seda escarlate e um fino bigode. 
O desenhista Phil Davis conheceu Leon Mandrake, 
 Com quem se relacionou durante largos anos, 
e que acabou por  inspirar Davis para a personagem Mandrake.

91- «A VINGANÇA DO PRESTIDIGITADOR»

— Agora, senhoras e senhores — disse o mágico —, tendo-lhes mostrado que este pano está absolutamente vazio, passo a retirar dele um aquário de peixes dourados. Pronto!
Em torno dele, a assistência comentava:
— Que maravilha! Como será que ele faz?
Mas o Homem Sabido da cadeira da frente disse, num cochicho audível, às pessoas ao lado:
— Ele o tinha escondido na manga.
Então a assistência fez ao Homem Sabido, com a cabeça, um sinal de concordância inteligente, e disse:
— Claro!
E todos cochicharam pelo salão:
— Ele o tinha escondido na manga.
— Agora, a minha mágica — disse o prestidigitador — são as famosas argolas hindustânicas. Observem que as argolas estão, evidentemente, separadas; um sopro, e ei-las juntas (tlim, tlim tlim)... Presto!
Houve um murmúrio geral de estupefação, até que se ouviu o Homem Sabido murmurar:
— Ele devia ter outras argolas escondidas na manga.
Outra vez todos concordaram com a cabeça, e cochicharam:
— As argolas estavam na manga dele.
O semblante do mágico anuviou-se, com um franzir de sobrancelhas.
— Agora — continuou — vou-lhes mostrar uma mágica bem divertida, que me permite retirar de um chapéu qualquer quantidade de ovos. Um dos cavalheiros aqui presentes poderia ter a gentileza de emprestar-me o seu chapéu? Ah, muito obrigado... Presto!
Extraiu dezessete ovos, e durante trinta e cinco segundos a assistência começou a pensar que ele era maravilhoso. E então o Homem Sabido cochichou pelo banco da frente:
— Ele tem uma galinha escondida na manga.
E todo mundo cochichou adiante a novidade:
— Ele tem uma porção de galinhas escondidas na manga.
A mágica dos ovos foi um desastre.
E o espetáculo continuou mais ou menos assim. Pelos cochichos do Homem Sabido, percebeu-se que o mágico devia ter escondido na manga, além das argolinhas e peixes, diversos baralhos, um pão, um berço de boneca, um porquinho-da-índia vivo, uma moeda de cinqüenta centavos e uma cadeira de balanço.
A reputação do mágico descera rapidamente abaixo de zero. Pelo fim da noite, ele reanimou-se para um esforço final:
— Minhas senhoras e meus senhores, para terminar, apresentarei uma formosa mágica japonesa, recentemente inventada pelos habitantes de Tipperary. O cavalheiro aí — continuou, dirigindo-se ao Homem Sabido —, o cavalheiro quer ter a bondade de entregar-me o seu relógio de ouro?
O relógio foi-lhe entregue.
— O cavalheiro me autoriza a colocá-lo neste almofariz e a despedaçá-lo? — perguntou, fulo de raiva.
O Homem Sabido disse que sim com a cabeça, e sorriu.
O mágico atirou o relógio no almofariz e agarrou um malho que se achava em cima da mesa. Ouviu-se um barulho de algo esmagado com violência.
— Ele o escondeu na manga — cochichou o Homem Sabido.
— Agora, cavalheiro — continuou o mágico —, permite-me tomar o seu lenço e esburacá-lo? Obrigado. Vejam, senhoras e senhores, não há engano possível; todos estão vendo os buracos.
O Homem Sabido estava radiante. Desta vez o mistério real da coisa fascinava-o.
— E agora, cavalheiro, quer ter a bondade de passar-me o seu chapéu de seda e permitir-me dançar em cima dele? Obrigado.
O mágico fez alguns passes rápidos, desta vez com os pés, e exibiu o chapéu, irreconhecível de tão amassado.
— E agora, cavalheiro, quer ter a bondade de retirar seu colarinho de celulóide e permitir-me queimá-lo com a vela? Obrigado, cavalheiro. E permite-me espatifar os seus óculos com o meu martelo? Obrigado.
Por essas alturas, as feições do Homem Sabido estavam tomando uma expressão de perplexidade.
— Não compreendo este negócio — cochichou. — Não consigo entendê-lo nem um pouquinho.
Fez-se grande silêncio no auditório. Então o mágico se empertigou em toda a sua estatura e, com um olhar fulminante para o Homem Sabido, concluiu:
— Senhoras e senhores, queiram observar que, com a permissão deste cavalheiro, quebrei-lhe o relógio, queimei-lhe o colarinho, espatifei-lhe os óculos e dancei-lhe em cima do chapéu. Se ele me permitir ainda pintar-lhe o sobretudo de listras verdes e dar-lhe um nó nos suspensórios, ficarei encantado em poder divertir os meus espectadores. Caso contrário, está terminado o espetáculo.
Envolto numa explosão de música da orquestra, caiu o pano e a assistência dispersou-se, convencida de que há algumas mágicas, pelo menos, que não dependem da manga do mágico.

Stephen Leacock

«CITAÇÃO DO DIA»

Tennessee Williams
Dramaturgo e Escritor Norte-Americano

«CITAÇÃO DO DIA»

“Uma prece pelos rebeldes de coração enjaulados” 

Tennessee Williams

Poet'anarquista

«HEROÍSMOS», POR CESÁRIO VERDE

Cesário Verde
Poeta Português

HEROÍSMOS

Eu temo muito o mar, o mar enorme, 
Solene, enraivecido, turbulento, 
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento; 
O mar sublime, o mar que nunca dorme. 

Eu temo o largo mar, rebelde, informe, 
De vítimas famélico, sedento, 
E creio ouvir em cada seu lamento 
Os ruídos dum túmulo disforme. 

Contudo, num barquinho transparente, 
No seu dorso feroz vou blasonar, 
Tufada a vela e n'água quase assente, 

E ouvindo muito ao perto o seu bramar, 
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente, 
Escarro, com desdém, no grande mar! 

Cesário Verde

Consultar:
Poet'anarquista

«DANÇA/ DETALHE», POR RENOIR

«Dança»
Pierre-Auguste Renoir

Consultar por aqui- «PINTURA - RENOIR»
Poet'anarquista

MARYA

Numa pose sensual Marya se mostrava...
As suas curvas por demais evidenciavam
A beleza escultural como só ela ousava;
Era rainha da noite, as estrelas brilhavam!

Um gesto gracioso deixando ver o porte
Seguido de olhar fatal, igual ao destino,
Fez deslizar no salão de baile a sua sorte…
Marya apresentava novo show no casino.

Arrebata alguns olhares mais atrevidos,
Mas indiferente segue com a sua dança
Ouvindo elogios, mas não dando ouvidos;

Segura nos seus gestos e com confiança
P’lo salão todos os passos são seguidos,
E Marya deixa antever ténue esperança!

Matias José

SONETO DE MÁRIO DE ANDRADE

Mário de Andrade
Poeta Brasileiro

ACEITARÁS O AMOR COMO EU O ENCARO?...

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Mário de Andade

Poet'anarquista

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

MÚSICAS DO MUNDO

E a música de hoje é...

BORIS VIAN - «Blues»

OUTROS CONTOS

«A Lua», por Jacob e Wilhelm (Irmãos Grimm).

«A Lua»
Foto: Poet'anarquista (detalhe)

90- «A LUA»

Em tempos que já lá vão havia uma terra onde a noite era sempre escura e o céu estendia-se sobre ela como um lenço negro, pois ali a Lua nunca subia e nenhuma estrela piscava na escuridão. Na altura da criação do mundo, a luz da noite era suficiente. Uma vez, saíram desta terra em peregrinação quatro rapazes e chegaram a um outro reino onde, quando à noite o Sol desaparecia atrás dos montes, havia uma esfera brilhante pendurada num carvalho, que deitava uma luz suave em todas as direções. Devido a ela, era possível ver e distinguir tudo muito bem, embora não fosse uma luz tão forte como a do Sol. Os rapazes pararam e perguntaram a um lavrador, que passava por ali com o seu carro, que luz era aquela. “Aquilo é a Lua”, respondeu ele, “o nosso prefeito comprou-a por três moedas e pendurou-a no carvalho. Tem de lhe deitar óleo todos os dias e mantê-la limpa, para que ela não deixe de brilhar. Por isso, pagamos-lhe uma moeda por semana.”

Assim que o lavrador partiu, disse um deles: “Esta lanterna fazia-nos jeito, também lá temos um carvalho, tão alto como este, onde a podemos pendurar. Que grande alegria deixar de tropeçar na escuridão!” “Sabem que mais?”, disse o segundo, “precisamos de arranjar um carro e um cavalo e levar a Lua embora. As pessoas daqui bem podem comprar uma outra.” “Eu trepo com muita facilidade”, disse o terceiro, “trago-a já para baixo!” O quarto trouxe um carro e um cavalo e o terceiro trepou pela árvore acima, fez um buraco na Lua, passou-lhe um fio e fê-la descer. Assim que a Lua brilhante ficou dentro do carro, deitaram-lhe um lenço por cima, para que ninguém se apercebesse do roubo. Levaram-na sem problemas para a sua terra e penduraram-na num carvalho. Velhos e novos alegraram-se, quando a nova lanterna começou a estender a sua luz sobre os campos e os quartos e salas se encheram dela. Os anões saíram dos seus buracos nas rochas e os pequenos elfos, com os seus casacos vermelhos, faziam rodas nos prados.

Os quatro rapazes tratavam da Lua com óleo, limpavam a mecha e recebiam a sua moeda semanal. No entanto, envelheceram e quando um deles adoeceu e se apercebeu de que a morte estava próxima, ordenou que o quarto de lua que lhe pertencia fosse levado com ele para a sepultura. Quando morreu, o prefeito trepou à árvore e, com a tesoura da poda, cortou um quarto da Lua que meteu no caixão. A luz da Lua diminuiu, mas não muito. Quando morreu o segundo, foi-lhe dado o segundo quarto e a luz minguou. Mais fraca ficou ainda quando morreu o terceiro, que também levou o seu quarto e, quando o quarto homem foi sepultado, instalou-se de novo a velha escuridão. Sempre que as pessoas saíam à noite sem lanterna, batiam com as cabeças umas nas outras.
         
Porém, assim que os quartos da Lua se juntaram no inferno, os mortos, habituados à escuridão, agitaram-se e acordaram do seu sono. Ficaram espantados por poderem ver de novo: a luz da Lua chegava-lhes bem, pois os seus olhos estavam tão fracos que não teriam podido suportar a luz do Sol. Ergueram-se, alegraram-se e retomaram os seus hábitos de vida. Alguns deles dedicaram-se ao jogo e à dança, outros foram para as tabernas onde pediram vinho, embriagaram-se, vociferaram e lutaram e, por fim, pegaram em cacetes e bateram uns nos outros. O barulho era cada vez maior até que, por fim, chegou ao céu.
         
São Pedro, que guarda as portas do céu, calculou que o inferno se tinha revoltado e chamou as hostes celestes, que lutavam contra o maligno, porque este e os seus associados pretendiam assolar a morada dos abençoados. Como, porém, elas não vinham, São Pedro montou no seu cavalo, atravessou as portas do céu e foi ao inferno. Aí sossegou os mortos, fê-los voltar de novo à sepultura e levou com ele a Lua, pendurando-a no céu.

Jacob e Wilhelm (Irmãos Grimm)

«PENSAMENTO DO DIA»

O filósofo e psiquiatra alemão Karl Theodor Jaspers, ou simplesmente Karl Jaspers, nasceu em Oldenburg, a 23 de fevereiro de 1883. Teve uma grande influência na teologia, psiquiatria e filosofia modernas, e foi apontado como um dos expoentes máximos do existencialismo na Alemanha. Karl Jaspers faleceu em Basel, na Suiça,a 26 de Fevereiro de 1969.
Poet’anarquista
Karl Jaspers
Filósofo Alemão

«PENSAMENTO DO DIA»

«Só nos momentos em que exerço minha liberdade é que sou plenamente eu mesmo:
ser livre significa ser eu mesmo...»

Karl Jaspers

«NOITE APRESSADA», POR DAVID MOURÃO-FERREIRA

David Mourão-Ferreira
Poeta Português

NOITE APRESSADA

Era uma noite apressada 
depois de um dia tão lento. 
Era uma rosa encarnada 
aberta nesse momento. 
Era uma boca fechada 
sob a mordaça de um lenço. 
Era afinal quase nada, 
e tudo parecia imenso! 

Imensa, a casa perdida 
no meio do vendaval; 
imensa, a linha da vida 
no seu desenho mortal; 
imensa, na despedida, 
a certeza do final. 

Era uma haste inclinada 
sob o capricho do vento. 
Era a minh'alma, dobrada, 
dentro do teu pensamento. 
Era uma igreja assaltada, 
mas que cheirava a incenso. 
Era afinal quase nada, 
e tudo parecia imenso! 

Imensa, a luz proibida 
no centro da catedral; 
imensa, a voz diluída 
além do bem e do mal; 
imensa, por toda a vida, 
uma descrença total! 

David Mourão-Ferreira

Poet'anarquista

domingo, 23 de fevereiro de 2014

PENSAMENTO DO DIA

Por aqui- «MÚSICA - ZECA AFONSO», sobre vida e obra do artista português.
Poet'anarquista
José Afonso
Artista Português

«PENSAMENTO DO DIA»

«Mal haja a noite assassina e quem domina sem nos vencer".

José Afonso 

OUTROS CONTOS

«3 mini.... mini contos.... – na tangente de linguagem aceitável», por O. W. Calabrese.

«Cavalgada no Tapete Voador» 
Milo Manara

87- «NA TANGENTE DA LINGUAGEM ACEITÁVEL»

1.º

“Minha querida, você sabe que eu sou conservador. Que não alinho nessas larguezas de costumes. E foi por me ter afastado dessa minha maneira de ser, que agora me vejo neste estado.” E o homem, apavorado, olhava para o meio das suas próprias pernas, para o sítio em que deveria estar um órgão sexual de média dimensão, e via uma espécie de salsicha gorda e inchada, nitidamente em má forma. Desde logo pela cor que apresentava: roxa.... roxa semana santa! Certamente por ali houvera grande derrame sanguíneo. E não obstante o mau aspecto, também doía, segundo ele dizia. Enquanto o homem se lamentava, inconsolável, a mulher, de cabelos loiros, olhos claros e fisicamente atraente, fazia a cosmética em frente do toucador. Ele continuava a olhar para o instrumento e a queixar-se: “Foi o que eu ganhei em deixar-me cavalgar por si. Essa história de mulher por cima sempre me fez muita confusão. Nestas coisas, mulher é para ficar por baixo. E você, querida, que trazia toda essa experiência do seu tempo de solteira, devia saber que, nessa posição, qualquer contorção da sua parte poderia provocar lesões. Mas não... não, você não se limitou a contorcer-se, você cavalgou, esporou, perdeu o controlo e o equilíbrio por várias vezes... e nem sequer ouviu quando eu gritei que me sentia quebrado. Raios... não vou deixar que você me use outra vez dessa maneira. Agora até me envergonho de ir ao médico. 

«A Massagem»
Milo Manara

Que justificação vou dar para isto?” E foi por esta altura da lamentação que a mulher, olhando para o objecto dos cuidados dele, disse: “Não se preocupe, meu amor. Mais logo vou dar-lhe uma boa massagem, e verá que rapidamente fica pronto para outra.”

FIM

«O Coito Primitivo»
Milo Manara

88- «NA TANGENTE DA LINGUAGEM ACEITÁVEL»

2.º

Como é que raios ela queria que ele demorasse a ejaculação? Ele era lá agora capaz de se suster! Bastava que ela o desafiasse para aquela posição e já ele se sentia em brasa. O curioso é que fora ele que, nos primeiros tempos de casados, tivera um trabalhão para a convencer a fazer sexo daquela maneira. Aos poucos, ela tomara-lhe o gosto e agora estava sempre a desafiá-lo para aquele tipo de coito primitivo. Mas sempre se queixava que ele ejaculava rapidamente. E o que podia ele fazer para evitar isso? Pois naquela posição, com ele a “cobri-la” por trás, ficava completamente à mercê da libido, e num instante esvaziava. Assim tinha acontecido nessa tarde. Bastara vê-la na cozinha, de rabo alçado, balançando as ancas ao ritmo da esfregona que ela passava no pavimento. Traçara-a com uma das mãos pela cintura e pedira-lhe uma rapidinha, enquanto o jantar acabava de apurar. Com ela inclinada sobre a máquina de lavar a loiça, com as mãos apoiadas no balcão da cozinha, começara por lhe morder a orelha, enquanto com a outra mão lhe baixava as calcinhas. Ainda se ajoelhara e passara a língua naquela púbis, muito peluda, e que já esperava a arremetida. Suplicara-lhe que não se contorcesse, que se mantivesse o mais quieta possível, pois já por mais que uma vez as contorções dela quase lhe tinham danificado o ‘equipamento’. Foi dito e  feito. – “Já está?” – perguntou ela, espantada com a rapidez. “Já” – respondeu ele. 

«O Jogo de Língua»
Milo Manara

“Pois fica sabendo que isto não acaba aqui. Mais logo, quando nos deitarmos, quero ser compensada com aquele jogo de língua em que tu és mestre e que me deixa sempre descomposta.” – disse ela, marcando uma posição definitiva.

FIM

«Satisfazendo as suas Fantasias»
Milo Manara

89- «NA TANGENTE DA LINGUAGEM ACEITÁVEL»

3.º

Sentia-se que nem uma gata assanhada pelo cio. Tinha dias assim. Eram os seus dias de ‘Gata em Telhado de Zinco Quente’, pensava ela, lembrando-se da peça de teatro de Tennessee Williams. Desde a  puberdade que assim era. Mas não se pense que se atirava ao primeiro homem que lhe aparecia. Tentava combater essa propensão para sexo rápido e sem compromisso, escolhendo criteriosamente a sua “vítima”: era assim que se referia aos homens que engatava nesses dias de brasa. Agora, já beirando os quarenta, ainda era mais criteriosa. Nesses dias, normalmente, acabava naquele bar em que tomava um copo no fim do dia de trabalho, olhando em volta e fisgando o tipo que lhe iria acalmar os sentidos. Nesse dia, calhou em sorte um espécime masculino, com cerca de metade da sua idade que, encostado ao balcão, sentado num banco alto, olhava tristemente para o fundo do copo. “Vou tirar a tristeza dos olhos daquele rapazinho.” – disse para si própria. E com a arte que a prática lhe tinha dado, em pouco mais de meia hora, já estava no quarto do hotel satisfazendo as suas fantasias. O mais difícil foi desfazer-se dele no fim da cena, pois o miúdo, com toda a gratidão do mundo no olhar, já começava a dizer que a amaria para sempre. Uma hora depois, após uma passagem rápida pelo supermercado, já ela estava a aquecer as pizzas que seriam o jantar da família que deveria estar a chegar.

FIM

O. W. Calabrese