segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

(Continuação...)

«Cinco Minutos», por José de Alencar.

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Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Caixa de Afrodite/ J. Waterhouse

43- «CINCO MINUTOS»

V

ASSIM ficamos muito tempo imóveis, ela, com a fronte apoiada sobre o meu peito, eu, sob a impressão triste de suas palavras.
Por fim ergueu a cabeça; e, recobrando a sua serenidade disse-me com um tom doce e melancólico:
— Não pensas que melhor é esquecer do que amar assim?
— Não! Amar, sentir-se amado, é sempre um gozo imenso e um grande consolo para a desgraça. O que é triste, o que é cruel, não é essa viuvez da alma separada de sua irmã, não; aí há um sentimento que vive, apesar da morte, apesar do tempo. É, sim, esse vácuo do coração que não tem uma afeição no mundo e que passa como um estranho por entre os prazeres que o cercam.
— Que santo amor, meu Deus! Era assim que eu sonhava ser amada! …
— E me pedias que te esquecesse!…
— Não! não! Ama-me; quero que me ames ao menos…
— Não me fugirás mais?
— Não.
— E me deixarás ver aquela que eu amo e que não conheço? perguntei, sorrindo.
— Desejas?
— Suplico-te!
— Não sou eu tua?…
Lancei-me para a saleta onde havia luz e coloquei o lampião sobre a mesa do gabinete em que estávamos.
Para mim, minha prima, era um momento solene; toda essa paixão violenta, incompreensível, todo esse amor ardente por um vulto de mulher, ia depender talvez de um olhar.
E tinha medo de ver esvaecer-se, como um fantasma em face da realidade, essa visão poética de minha imaginação, essa criação que resumia todos os tipos.
Foi, portanto, com uma emoção extraordinária que, depois de colocar a luz, voltei-me.
Ah!…
Eu sabia que era bela; mas a minha imaginação apenas tinha esboçado o que Deus criara.
Ela olhava-me e sorria.
Era um ligeiro sorriso, uma flor que se desfolhava nos seus lábios, um reflexo que iluminava o seu lindo rosto.
Seus grandes olhos negros fitavam em mim um desses olhares lânguidos e aveludados que afagam os seios d’alma.
Um anel de cabelos negros brincava-lhe sobre o ombro, fazendo sobressair a alvura diáfana de seu colo gracioso.
Tudo quanto a arte tem sonhado de belo e de voluptuoso desenhava-se naquelas formas soberbas, naqueles contornos harmoniosos que se destacavam entre as ondas de cambraia de seu roupão branco.
Vi tudo isto de um só olhar, rápido, ardente e fascinado! depois fui ajoelhar-me diante dela e esqueci-me a contemplá-la.
Ela me sorria sempre e se deixava admirar.
Por fim tomou-me a cabeça entre as mãos e seus lábios fecharam-me os olhos com um beijo.
— Ama-me, disse.
O sonho esvaeceu-se.
A porta da sala fechou-se sobre ela, tinha-me fugido.
Voltei ao hotel.
Abri a minha janela e sentei-me ao relento.
A brisa da noite trazia-me de vez em quando um aroma de plantas agrestes que me causava íntimo prazer.
Fazia lembrar-me da vida campestre, dessa existência doce e tranquila que se passa longe das cidades, quase no seio da natureza.
Pensava como seria feliz, vivendo com ela em algum canto isolado, onde pudéssemos abrigar o nosso amor em um leito de flores e de relva.
Fazia na imaginação um idílio encantador e sentia-me tão feliz que não trocaria a minha cabana pelo mais rico palácio da terra.
Ela me amava.
Só essa ideia embelezava tudo para mim; a noite escura de Petrópolis parecia-me poética e o murmurejar triste das águas do canal tornava-se-me agradável.
Uma coisa, porém, perturbava essa felicidade; era um ponto negro, uma nuvem escura que toldava o céu da minha noite de amor.
Lembrava-me daquelas palavras tão cheias de angústia e tão sentidas, que pareciam explicar a causa de sua reserva para comigo: havia nisto um quer que seja que eu não compreendia.
Mas esta lembrança desaparecia logo sob a impressão de seu sorriso, que eu tinha em minh’alma, de seu olhar, que eu guardava no coração, e de seus lábios, cujo contato ainda sentia.
Dormi embalado por estes sonhos e só acordei quando um raio de sol, alegre e travesso, veio bater-me nas pálpebras e dar-me o bom dia.
O meu primeiro pensamento foi ir saudar a minha casinha; estava fechada.
Eram oito horas.
Resolvi dar um passeio para disfarçar a minha impaciência; voltando ao hotel, o criado disse-me terem trazido um objeto que recomendaram me fosse entregue logo.
Em Petrópolis não conhecia ninguém; devia ser dela.
Corri ao meu quarto e achei sobre a mesa uma caixinha de pau-cetim; na tampa havia duas letras de tartaruga incrustadas: C. L.
A chave estava fechada em uma sobrecarta com endereço a mim; dispus-me a abrir a caixa com a mão trêmula e tomado por um triste pressentimento.
Parecia-me que naquele cofre perfumado estava encerrada a minha vida, o meu amor, toda a minha felicidade.
Abri.
Continha o seu retrato, alguns fios de cabelos e duas folhas de papel escritas por ela e que li de surpresa em surpresa.

José de Alencar
(Continua...)

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