sábado, 14 de dezembro de 2013

OUTROS CONTOS

(Continuação...)

«Cinco Minutos», por José de Alencar.

Ler aqui- «OUTROS CONTOS», I Capítulo.
Ler aqui- «OUTROS CONTOS», II Capítulo.
Poet'anarquista
«Cinco Minutos»
Viajem a Tijuca

43- «Cinco Minutos»

III

RECOLHENDO-ME no dia seguinte, achei em casa uma carta.
Antes de abri-la conheci que era dela, porque lhe tinha imprimido esse suave perfume que a cercava como uma auréola.
Eis o que dizia:
“Julga mal de mim, meu amigo; nenhuma mulher pode escarnecer de um nobre coração como o seu.
“Se me oculto, se fujo, é porque há uma fatalidade que a isto me obriga. E só Deus sabe quanto me custa este sacrifício, porque o amo!
“Mas não devo ser egoísta e trocar sua felicidade por um amor desgraçado.
“Esqueça-me.
Reli não sei quantas vezes esta carta, e, apesar da delicadeza de sentimento que parecia ter ditado suas palavras, o que para mim se tornava bem claro é que ela continuava a fugir-me.
Essa assinatura era a mesma letra que marcava o seu lenço e à qual eu, desde a véspera, pedia debalde um nome!
Fosse qual fosse esse motivo que ela chamava uma fatalidade e que eu supunha ser apenas escrúpulo, senão uma zombaria, o melhor era aceitar o seu conselho e fazer por esquecê-la.
Refleti então friamente sobre a extravagância da minha paixão e assentei que com efeito precisava tomar uma resolução decidida.
Não era possível que continuasse a correr atrás de um fantasma que se esvaecia quando ia tocá-lo.
Aos grandes males os grandes remédios, como diz Hipócrates. Resolvi fazer uma viagem.
Mandei selar o meu cavalo, meti alguma roupa em um saco de viagem, embrulhei-me no meu capote e saí, sem me importar com a manhã de chuva que fazia.
Não sabia para onde iria. O meu cavalo levou-me para o Engenho-Velho e eu daí me encaminhei para a Tijuca, onde cheguei ao meio-dia, todo molhado e fatigado pelos maus caminhos.
Se algum dia se apaixonar, minha prima, aconselho-lhe as viagens como um remédio soberano e talvez o único eficaz.
Deram-me um excelente almoço no hotel; fumei um charuto e dormi doze horas, sem ter um sonho, sem mudar de lugar.
Quando acordei, o dia despontava sobre as montanhas da Tijuca.
Uma bela manhã, fresca e rociada das gotas de orvalho, desdobrava o seu manto de azul por entre a cerração, que se desvanecia aos raios do sol.
O aspecto desta natureza quase virgem, esse céu brilhante, essa luz esplêndida, caindo em cascatas de ouro sobre as encostas dos rochedos, serenou-me completamente o espírito.
Fiquei alegre, o que havia muito tempo não me sucedia.
O meu hóspede, um inglês franco e cavalheiro, convidou-me para acompanhá-lo à caça; gastamos todo o dia a correr atrás de duas ou três marrecas e a bater as margens da Restinga.
Assim passei nove dias na Tijuca, vivendo uma vida estúpida quanto pode ser: dormindo, caçando e jogando bilhar.
Na tarde do décimo dia, quando já me supunha perfeitamente curado e estava contemplando o sol, que se escondia por detrás dos montes, e a lua, que derramava no espaço a sua luz doce e acetinada, fiquei triste de repente.
Não sei que caminho tomavam as minhas ideias; o caso é que daí a pouco descia a serra no meu cavalo, lamentando esses nove dias, que talvez me tivessem feito perder para sempre a minha desconhecida.
Acusava-me de infidelidade, de traição; a minha fatuidade dizia-me que eu devia ao menos ter-lhe dado o prazer de ver-me.
Que importava que ela me ordenasse que a esquecesse?
Não me tinha confessado que me amava, e não devia eu resistir e vencer essa fatalidade, contra a qual ela, fraca mulher, não podia lutar?
Tinha vergonha de mim mesmo; achava-me egoísta, cobarde, irrefletido, e revoltava-me contra tudo, contra o meu cavalo que me levara à Tijuca, e o meu hóspede, cuja amabilidade ali me havia demorado.
Com esta disposição de espírito cheguei à cidade, mudei de traje e ia sair, quando o meu moleque me deu uma carta.
Era dela.
Causou-me uma surpresa misturada de alegria e de remorso:
“Meu amigo.
“Sinto-me com coragem de sacrificar o meu amor à sua felicidade; mas ao menos deixe-me o consolo de amá-lo.
“Há dois dias que espero debalde vê-lo passar e acompanhá-lo de longe com um olhar! Não me queixo; não sabe nem deve saber em que ponto de seu caminho o som de seus passos faz palpitar um coração amigo.
“Parto hoje para Petrópolis, donde voltarei breve; não lhe peço que me acompanhe, porque devo ser-lhe sempre uma desconhecida, uma sombra escura que passou um dia pelos sonhos dourados de sua vida.
“Entretanto eu desejava vê-lo ainda uma vez, apertar a sua mão e dizer-lhe adeus para sempre.
“C.”
A carta tinha a data de 3; nós estávamos a 10; havia oito dias que ela partira para Petrópolis e que me esperava.
No dia seguinte embarquei na Prainha e fiz essa viagem da baía, tão pitoresca, tão agradável e ainda tão pouco apreciada.
Mas então a majestade dessas montanhas de granito, a poesia desse vasto seio de mar, sempre alisado como um espelho, os grupos de ilhotas graciosas que bordam a baía, nada disto me preocupava.
Só tinha uma ideia… chegar; e o vapor caminhava menos rápido do que meu pensamento.
Durante a viagem pensava nessa circunstância que a sua carta me revelara, e fazia-me por lembrar de todas as ruas por onde costumava passar, para ver se adivinhava aquela onde ela morava e donde todos os dias me via sem que eu suspeitasse.
Para um homem como eu, que andava todo o dia desde a manhã até a noite, a ponto de merecer que a senhora, minha prima, me apelidasse de Judeu Errante, este trabalho era improfícuo.
Quando cheguei a Petrópolis, eram cinco horas da tarde; estava quase noite.
Entrei nesse hotel suíço, ao qual nunca mais voltei, e enquanto me serviam um magro jantar, que era o meu almoço, tomei informações.
— Têm subido estes dias muitas famílias? perguntei eu ao criado.
— Não, senhor.
— Mas, há coisa de oito dias não vieram da cidade duas senhoras?
— Não estou certo.
— Pois indague, que preciso saber e já; isto o ajudará a obter informações.
A fisionomia sisuda do criado expandiu-se ao tinir da moeda e a língua adquiriu a sua elasticidade natural.
— Talvez o senhor queira falar de uma senhora já idosa que veio acompanhada de sua filha?
— É isso mesmo.
— A moça parece-me doente; nunca a vejo sair.
— Onde está morando?
— Aqui perto, na rua de…
— Não conheço as ruas de Petrópolis; o melhor é acompanhar-me e vir mostrar-me a casa,
— Sim senhor.
O criado seguiu-me e tomamos por uma das ruas agrestes da cidade alemã.

José de Alencar
(Continua...)

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